2.2.23

A tênue e delicada fronteira entre a memória e a dor



A nova série anunciada recentemente pela Netflix - "Todo o dia a mesma noite" - tem causado polêmica. (Reportagem no portal uol).




A produção é baseada em acontecimentos reais, trata-se do incêndio que ocorreu na boate Kiss, em Santa Maria - RS em 2013, que culminou na morte de 232 pessoas e deixou mais de 600 feridos.

A divulgação do trailer causou muito desconforto em familiares das vítimas, pois a dramatização reavivou a dor pela perda dos entes queridos e realçou a angústia e o sentimento de injustiça, visto que até hoje as autoridades competentes não ofereceram uma resposta definitiva sobre o ocorrido. Alguns familiares desaprovam a série de streaming, alegam que sequer foram ouvidos pela produtora e há a possibilidade do caso ir parar na justiça.

Contudo, uma associação que representa as famílias das vítimas do incêndio emitiu uma nota oficial afirmando acreditar no potencial da produção enquanto instrumento de preservação da memória das vítimas e da luta por justiça. Além disso, a série pode denunciar para milhares de telespectadores as eventuais negligências do caso e colaborar para a prevenção de outras fatalidades.

Em suma, o uso memória neste caso mostrou-se muito delicado. A exposição do drama das famílias na mídia traz à tona muita dor e sofrimento, por outro lado, pode ajudar a pressionar a justiça e uma solução mais adequada para o problema. De todo modo, não custaria nada à equipe de produção ter tido uma ampla conversa com os familiares das vítimas da tragédia, na tentativa de evitar todo esse desconforto.

O exemplo desta série da Netflix também traz a lume o desafio dos pesquisadores que trabalham com a memória social. Nós, historiadores, estamos sempre trabalhando com a memória, entrevistando pessoas e colhendo depoimentos na tentativa de reconstituir os fatos do passado. Quando se trabalha com memória há que se tomar muitos cuidados pois, como vimos, a divulgação das produções baseadas nas memórias das pessoas podem gerar graves transtornos. Portanto, cabe ao pesquisador da área adotar uma postura ética e responsável.

Acreditamos que os trabalhos de preservação da memória, elaborados com rigor ético, são importantíssimos para toda a sociedade e,  por isso, devem ser incentivados e valorizados. Afinal, a memória deixa valiosos ensinamentos para as gerações do presente e do futuro, denuncia mazelas e pode auxiliar na correção e prevenção de equívocos e eventuais injustiças. 

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