11.4.23

A construção dos discursos dicotômicos

Civilizados, bárbaros e selvagens


Ao longo da História das civilizações os contatos entre diferentes povos, na maioria das vezes, ocorreu de forma conflituosa, antagônica, dicotômica.

Essa dicotomia na relação entre os grupos humanos dividia os povos em dois polos opostos, caso das ideias ligadas aos termos civilizado e bárbaro.

Os povos "civilizados" se colocavam numa posição de superioridade cultural, física e tecnológica em relação a outros, os quais eram rotulados de bárbaros, devido à sua suposta inferioridade cultural. 

Nesse sentido, aos bárbaros e selvagens restavam poucas alternativas: servir aos interesses dos povos civilizados ou ser exterminado por eles.
Essa dicotomia é bastante evidente em uma lenda da Mesopotâmia Antiga que exaltava Gilgamesh,  governante de Uruk por volta de 2650 a. C.

A epopeia de Gilgamesh destaca a muralha e o templo construídos pelo monarca e outros atributos do herói. O antigo poema também nos apresenta Enkidu, um ser criado para antagonizar Gilgamesh. Enkidu foi deixado na floresta, longe da humanidade, tinha o corpo coberto de pelos e era selvagem como os animais.

"Quando os deuses criaram Gilgamesh deram-lhe um corpo perfeito. Shamash, o glorioso Sol, dotou-o de beleza. Adad, o deus da tempestade, dotou-o de coragem. Os grandes deuses fizeram perfeita a sua beleza que ultrapassava todas as outras. Dois terços o fizeram deus e um terço, humano.  Em Uruk ele construiu muralhas, uma grande fortaleza e o bendito templo Eanna, para Anu, o deus do firmamento, e  para Ishtar, a deusa do amor e da guerra. Gilgamesh andou por terras estrangeiras, através do mundo, mas até regressar a Uruk não encontrou ninguém que  pudesse resistir aos seus braços.

[...]

Eles que briguem um com o outro e deixem Uruk em paz. A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu. Havia nele virtudes do deus da guerra, do próprio Ninurta. Seu corpo era rústico, seus cabelos como os de uma mulher; eles ondulavam como os cabelos de Nisaba, a deusa dos grãos. Ele tinha o corpo coberto por pelos emaranhados como os de Samuqan, o deus do gado. Ele era inocente a respeito da humanidade e nada conhecia do cultivo da terra" (Epopeia de Gilgamesh). 

Na Grécia Antiga o filósofo Aristóteles também se referiu aos povos bárbaros, isto é, aqueles que não tinham os mesmos costumes e nem falavam a mesma língua dos gregos. 

"É para a mútua conservação que a natureza deu a um o comando e impôs a submissão ao outro. Pertence também ao desígnio da natureza que comande quem pode, por sua inteligência, tudo prover e, pelo contrário, que obedeça quem não possa contribuir para a prosperidade comum a não ser pelo trabalho de seu corpo. Esta partilha é salutar para o senhor e para o escravo" (ARISTÓTELES,  A política).

O filósofo grego também destacou a diferença entre livres e escravos. O pensamento aristotélico servirá de base para justificar a escravidão na Idade Moderna e o sistema mercantil de tráfico montado pelos europeus. Os povos indígenas e africanos serão considerados bárbaros, inferiores, portanto, passíveis à submissão. Enquanto o europeu vê a si mesmo como civilizado e responsável pela propagação do cristianismo por todos os cantos do mundo. 


[TEXTO RELACIONADO: AS RAÍZES DO TERROR]


A imagem do colonizador e do colonizado

O colonialismo, iniciado no século XV, opôs as condições do colono e do colonizado, estabelecendo diferenças para justificar o processo de dominação do último pelo primeiro. 

"O termo Colonialismo pode ser conceituado como um método de dominação de uma nação sobre outra por meios territoriais, culturais e econômicos. Existem dois modelos de formação de colônias: o modelo de exploração, que busca a extração de recursos e matérias-primas da região colonizada para o império colonizador e o modelo de povoamento, relacionado com o deslocamento de uma massa de colonos para o território a ser colonizado. O Colonialismo está diretamente ligado ao Imperialismo e ao Orientalismo, este último vinculado a uma falsa ideia de globalização que compõe uma narrativa de legitimação do processo de invasão e opressão do Ocidente sobre o Oriente". (Laboratório de estudo do mundo árabe e islã, Universidade Federal do Pampa).


Na América, o processo colonizador resultou num terrível genocídio, os povos colonizados foram exterminados pela guerra, pelas doenças e pelo trabalho forçado. O frei espanhol Bartolomeu de Las Casas registrou com assombro as crueldades praticadas pelos colonizadores espanhóis contra os povos indígenas:

“Na ilha Espanhola que foi a primeira, como se disse, a que chegaram os espanhóis, começaram as grandes matanças e perdas de gente, tendo os espanhóis começado a tomar as mulheres e filhos dos índios para deles servir-se e usar mal e a comer seus víveres adquiridos por seus suores e trabalhos, não se contentando com o que os índios de bom grado lhes davam, cada qual segundo sua faculdade, a qual é sempre pequena porque estão acostumados a não ter de provisão mais do que necessitam e que obtêm com pouco trabalho. E o que pode bastar durante um mês para três lares de dez pessoas, um espanhol o come ou destrói num só dia. Depois de muitos outros abusos, violências e tormentos a que os submetiam, os índios começaram a perceber que esses homens não podiam ter descido do céu. Alguns escondiam suas carnes, outros suas mulheres e seus filhos e outros fugiam para as montanhas a fim de se afastar dessa Nação. Os espanhóis lhes davam bofetadas, socos e bastonadas e se ingeriam em sua vida até deitar a mão sobre os senhores das cidades.”  

Os índios que sobreviviam fugiam ou acabavam sendo submetidos à servidão, outros eram reunidos em aldeias e  passavam pela catequese sob os cuidados de missionários religiosos, como os jesuítas.


Na América Portuguesa os índios eram tratados como selvagens,  visto que:

"Não reconhecendo nos nativos uma cultura própria, os portugueses pretendiam torná-los súditos do rei de Portugal e cristãos. Eram incapazes de entender os índios e o seu contexto sócio - cultural, reduzindo-os à condição de selvagens, de acordo com os padrões europeus" (Site Multirio). 

Um cronista português do século XVI, Pero de Magalhães Gândavo, explicitou, num relato, a incapacidade do europeu em compreender a cultura e a organização social e política própria dos povos indígenas. 

"A lingua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de tres letras —scilicet, não se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.

Estes indios andão nús sem cobertura alguma, assi machos como femeas; não cobrem parte nenhuma de seu corpo..."

A



A incompreensão dos europeus acerca do modo de vida dos povos indígenas gerou preconceitos e os rótulos de "selvagens", "bárbaros", os quais deveriam ser combatidos pela "guerra justa" ou assimilados pela aculturação, pelo trabalho escravo e a aceitação dos costumes e crenças europeias.



Avaliação 

(ENEM, 2015) A língua de que usam, por toda a costa, carece de três letras; convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e dessa maneira vivem desordenadamente, sem terem além disto conta, nem peso, nem medida.

GÂNGAVO, P.  M. A primeira história do Brasil: história da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2004 (adaptado)


A observação do cronista português Pero de Magalhães de Gândavo, em 1576, sobre a ausência das letras F, L e R na língua mencionada, demonstra a

A) simplicidade da organização social das tribos brasileiras.
B) dominação portuguesa imposta aos índios no início da colonização.
C) superioridade da sociedade europeia em relação à sociedade indígena.
D) incompreensão dos valores socioculturais indígenas pelos portugueses.
E) dificuldade experimentada pelos portugueses no aprendizado da língua nativa.

Jogo

Cruzadinha sobre o conteúdo. 

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