22.3.23

[Entrevista] Historiadora Mary del Priore

Confira, a seguir, uma entrevista para lá de especial com a Historiadora best-seller, Dra. Mary del Priore.


AC - Professora Mary, você é uma das referências mais importantes para os estudos sobre História do Brasil. Poderia nos contar como surgiu sua paixão pela pesquisa histórica e um pouco de sua trajetória acadêmica e profissional?

Mary del Priore - A história entrou em mim através dos livros. Eu não estudava, lia. Criança solitária e semi-interna no Colégio Sion, comecei a ler muito cedo, sobretudo a literatura infanto-juvenil que misturava aventuras e viagens. Viajar no tempo se tornou uma mania, um hábito, um prazer. No colégio, a única matéria em que me destacava era História. Como muitas mulheres da minha geração, logo abandonei a faculdade para me casar. Só pude voltar depois de três filhos. Aliás, cresci, estudando com eles. Passei no vestibular da PUC/SP onde tive excelentes professores, mas sob o império dos estudos marxistas. Eu frequentava a Livraria Francesa, no centro de SP, onde adquiria livros de historiadores das mentalidades que estavam revolucionando o fazer-história. Eu queria fazer “outra história” e não a que ouvia na faculdade. Por isso, optei pelos pós na USP onde tive a sorte de ter excelente orientadora: Maria Luiza Marcilio. Logo no primeiro ano, ganhei um concurso da OEA para um curso na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. A experiência me tornou ainda mais determinada a buscar meus próprios caminhos, sem entrar em caixinhas ideológicas. Passei em 1º. lugar num concurso para História do Brasil Colônia e durante 12 anos lecionei na História da FFLCH/USP. Adorava os alunos, mas sentia que a burocracia me sufocava. Deixei a USP com um projeto: fazer história para todos. Os prêmios se sucederam. Recebi mais de vinte, inclusive quatro Jabutis por livros que nunca teria escrito numa trajetória acadêmica. Afinal, estava fazendo o que queria: história com prazer. Ao mudar para o Rio, lecionei brevemente na PUC e na Universidade Salgado de Oliveira. Sim, sinto falta de alunos e colegas com quem sempre renovei meu aprendizado. Mas compenso na companhia de protagonistas de outrora, homens e mulheres do passado, que seguem me dando lições.



AC - Quais autores e obras lhe exerceram maior fascínio? 

Mary del Priore - Indiscutivelmente Gilberto Freyre e seus três clássicos, Casa Grande e Senzala, Sobrados e Mucambos, Ordem e Progresso. Na graduação da PUC, passamos anos em torno de dois ou três autores que explicavam o passado por meio do modo de produção. Que simplificação, que tédio. O passado é tão complexo, os arquivos brasileiros tão inéditos e ricos, o Brasil tão grande e suas realidades sociais tão diversas, como não ser arrebentada por uma prosa cheia de saber e alegria contida na escrita de GF? Ele falava de tudo que me interessava: vida cotidiana, sexualidade, cozinha, mestiçagem, trabalho, natureza, trocas culturais, enfim, relações humanas vivas. Aqueles eram livros escritos com o prazer que eu queria dar, desde então, a quem me lesse. O mais bizarro é que, na graduação da PUC, a patrulha ideológica, perseguia e lacrava quem lesse GF, o que o tornava tão mais proibido quanto atraente. Tínhamos um pequeno grupo de leitura e enfrentávamos com bom humor o climão pesado de alguns cursos. Leio sempre com renovado prazer a trilogia de GF. E antes que venha nova lacração, é sempre bom lembrar: ele nunca jamais falou em “democracia racial”.


AC - Quais são os maiores desafios que você enfrentou enquanto Historiadora? Considera que ainda falta reconhecimento e mais espaço no mercado para os profissionais da história? 

Mary del Priore - Confesso que tive muita sorte, pois, não basta ter talento ou paixão pelo oficio. É necessário que as condições de trabalho ajudem. Tudo me favoreceu. Nos anos 90, na USP, pude dar o curso que quisesse e tive alunos maravilhosos, hoje espalhados pelas federais e estaduais do Brasil. Era a época de cobrar produtividade dos professores e nada me alegrava mais do que escrever: livros, artigos, resenhas. Professores estrangeiros vinham para cá, centenas de clássicos eram traduzidos, e também muitos de nós puderam fazer pesquisas em Portugal, ou no meu caso, França. Os editores me encomendavam um livro atrás do outro. Uma geração se formou no melhor momento das Ciências Humanas. .

Hoje, sem dúvida falta espaço e reconhecimento para profissionais de história fora do próprio meio. Mas precisamos analisar o porquê. Eu diria que o isolamento dentro dos Departamentos e “a história do pequeno jardim”, como a denominou meu querido amigo Ronaldo Vainfas, deixaram passar na frente jornalistas e ficcionistas que escrevem sem enrolar a língua, como faz a maior parte dos acadêmicos. Há, porém, brechas para respirar. As efemérides são sempre ocasião de mostrar o trabalho de muitos, sem contar que a internet facilitou a divulgação de pesquisas, artigos e teses. Mas no cômputo geral, são pouquíssimos os historiadores presentes na vida pública. A sua falta de visibilidade incentiva a apropriação da História por outros atores da cultura: diretores de cinema e novelas, influencers e pseudo-professores fakes na Internet. Daí a importância da dita “história pública”, cujo objetivo é o de valorizar o próprio ofício ou os colegas.

Mas também ocorreram problemas em nível teórico. Entre os anos 80 e 90, as Ciências Humanas entraram numa crise teórica e política. Numa espécie de revanche, a teoria da desconstrução cancelou o estruturalismo. Vários teóricos passaram a desqualificar a significação do discurso cientifico e sua capacidade de ter um sentido objetivo. Nos tornamos ciências puramente interpretativas. No século XXI, certa radicalidade identitária e a ideologia do cancelamento aceleraram a fragmentação de nosso oficio. Nesse quadro, a “uberização” de jovens historiadores doutores é visível. Desempregados ao final da pós-graduação, eles lutam para sobreviver com bicos e se esfalfam em trabalhos díspares, constituindo uma espécie de proletariado profissional sem grandes perspectivas.


AC - Vários de seus livros, como as publicações da tetatrologia "Histórias da gente brasileira", tornaram-se sucesso de venda. Num país onde a memória coletiva e a História são pouco valorizadas, como explica a grande demanda e procura pelos seus livros?



Mary del Priore - Explico: não são livros acadêmicos. Ao contrário. Meu leitor é gente comum, profissionais de outras áreas, amantes de História. Procurei ligar temas nascidos da farta produção historiográfica com assuntos que interessam à sociedade: trabalho, casamento e família, doença e morte, enfim, tudo o que ilustra e dá a ver o cotidiano de nossos antepassados. E procuro fazê-lo literalmente através de textos saborosos, que transportam o leitor a outros tempos, sem esmagar a narrativa com teorias e conceitos. A tetratologia Histórias da Gente Brasileira irá ao ar em julho no Canal History Channel com entrevistas com vários especialistas nossos conhecidos. A facilidade de leitura dos livros que escrevo me tornaram consultora de vários diretores de cinema, autora de obras institucionais ou palestrante em clubes, academias ou órgãos públicos. Não sou a única. Temos colegas que navegam entre o jornalismo e publicações como Jorge Caldeira e Eduardo Bueno. E outros ainda, como Christian Linch e Heloisa Starling que, em colaboração com meios de comunicação, nos explicam magnificamente como e porque o Brasil derivou para a extrema Direita. Ainda que o grosso da população desconheça ou não se interesse por história, ela é um produto cultural como outro qualquer. Como torna-lo atraente? Falando, não apenas PARA, mas COM o povo brasileiro.

AC - A reforma do Ensino Médio tem preocupado pesquisadores, professores universitários e docentes da educação básica devido à redução da carga horária de várias disciplinas, inclusive das Ciências Humanas e Sociais. Como a senhora vê o ensino de História na educação básica como um todo? Com a perda de espaço do ensino de História nas grades Curriculares, quais seriam os prejuízos para os jovens e a sociedade?

Mary del Priore - E a preocupação tem razão de ser. Todos sabemos que uma sociedade aberta e democrática, tem necessidade da reflexão que a História e as Ciências Humanas trazem. Temos recursos intelectuais para abrir o debate das questões de fundo, sem nos contentarmos com soluções cosméticas? Resposta: sim. Mas, essa disposição esbarra em questões que, sabemos, estruturais. A primeira delas é o compromisso da sociedade com a educação. Não se pode esperar que todas as soluções venham de cima, ou do Executivo seja lá quem o exerça. A aliança entre sociedade e educadores – como já mostrou o sociólogo Pierre Bourdieu – é essencial. Quantas vezes conseguimos colocar gente na rua, em passeatas por melhores condições de ensino, bibliotecas, respeito aos educadores? Se bem me lembro, ao final da Ditadura. Mas para pedir mais espaço para blocos de Carnaval, milhares acorrem. A família, seja monoparental, nuclear, etc., tem que se comprometer com o ideal da escolarização e letramento de seus filhos. E não basta levar até a porta da escola. É preciso valorizar por palavras e ações, seu comprometimento com a vida escolar. No caso da História, também. Valorizar o passado, os lugares de memoria da cidade onde se mora, criar projetos que valorizem os ancestrais, visitar museus e sobretudo, demonstrar respeito ao assunto é fundamental. As séries de tv e livros de história infanto-juvenil estão investindo, ainda que timidamente no filão. Acabei de fazer um livro com Mauricio de Souza onde virei personagem da Turma da Monica, contando sobre a Independência do Brasil. Vamos todos aproveitar a onda.

A segunda barreira me aparece mais difícil. Trata-se da revolução tecnológica em que estamos submergindo sem nos darmos conta. Quem não tem celular, hoje em dia? São 242 milhões de celulares inteligentes em uso no país, que tem pouco mais de 214 milhões de habitantes, de acordo com o IBGE. A pesquisa mostra ainda que, ao adicionar notebooks e tablets, os aparelhos resultam em 352 milhões de dispositivos portáteis, o equivalente a 1,6 por pessoa. De acordo com prognósticos de especialistas, o futuro de certa forma caótico e até mesmo catastrófico, é um cenário onde todas as inteligências artificiais vão interagir com dados de qualquer fonte em todo tipo de situação para criar novos conhecimentos. E ele foi escancarado pelo ChatGPT. Temos que parar de fingir que não vemos as Ciências Humanas perderem seu lugar frente à tecnologia. E começar a pensar em como interagir com as mudanças.


AC - Atualmente, a senhora está trabalhando em algum projeto editorial ou desenvolvendo novas pesquisas? Se possível, poderia falar um pouco sobre os projetos e novas obras que estão por vir?

Mary Del Priore - Esse ano pretendo me dedicar mais ao Clube da História, um canal no Youtube sem pretensões, mas que buscar promover os colegas que tem dificuldade de divulgação de seus trabalhos. Também, vou oferecer um curso sobre meu livro Histórias Íntimas que, depois de vender mais de cem mil exemplares será relançado em abril. Acredito que discutir a sexualidade dos brasileiros é importante, uma vez que as pautas morais estão na ordem do dia. No segundo semestre, será lançado Memórias de uma família imperial – os Bragança no exílio. Poucos conhecem o destino da princesa Isabel e seus filhos, depois do golpe republicano. Faço revelações inéditas sobre o cotidiano de uma família que, apesar de coroada, viveu suas tensões, dificuldades e perdas como quaisquer humanos mortais.

Apesar do cenário não ser luminoso, não desisto da História. Todos que amamos História temos que nos ajudar, nos escutar e dar as mãos para levar o melhor de nosso ofício para o maior número de pessoas.

2 comentários:

  1. Inspirador, na medida que serve de exemplo para as novas gerações, entretanto, nos leva à refletir os rumos questionáveis de nossa Educação. Parabéns !

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Obrigado pelo comentário.