Como todos já sabem, se é que alguém irá ler meus fragmentos de memória um dia, sou um humilde caixeiro viajante, mas devido à minha formação geral numa escola de monges católicos tinha noções de ciências, filosofia, história e álgebra. Tais habilidades me tornaram um observador arguto de minha realidade e por mais que minha formação me dirigisse para a fé eu buscava o caminho da razão.
Certa vez, depois do trabalho, me deparei com um mendigo deitado na escadaria da Igreja, bem no centro da cidade. Deixei um pedaço de pão ao lado dele e antes de recolher meu braço ele me segurou firme. Pediu para eu esperar e perguntou se não gostaria de ouvir sua história enquanto dividíamos aquele pão. Respondi que não podia esperar, mas ele insistiu que eu ficasse, então assentei ao seu lado e o maltrapilho começou a contar coisas interessantíssimas enquanto comia o pão.
A seguir reproduzirei, da forma mais fidedigna possível, o que me foi relatado por aquele homem. Ele contou que pertencera a uma rica família da cidade, era herdeiro de terras e vinha de uma linhagem de chefes políticos locais. Seu nome era João. Porém, enfrentou graves problemas depois que começou a defender publicamente a ideia de que Deus estava morto e por isso fora perseguido, internado e perdera tudo com os custos dos modernos tratamentos psiquiátricos.
Falou que no lugar onde fora internado o trataram como louco, havia passado por doloroso tratamento, que incluía terapia à base de choques elétricos. Mostrou diversas cicatrizes pelo corpo, resultado de espancamentos que sofria por parte dos seguranças e dos demais internos. Chamou o lugar de cemitério dos vivos, pois quem entrava lá jamais saía novamente ou se saísse era na condição de um morto-vivo.
Ele havia recebido alta depois de pagar muito dinheiro ao médico responsável pelo sanatório. O restante de seus bens havia sido confiscados pelas autoridades municipais por conta de dívidas com fisco, assim, esse cidadão chamado João havia caído em miséria e desgraça.
Quando pensei que a história havia terminado ele acrescentou que me contaria sua teoria sobre a morte de Deus, passou a citar diversas passagens das escrituras sagradas que demonstrariam o óbito divino. Segundo ele, a morte do Criador foi processual, ocorreu em etapas, na medida em que suas principais criações foram lhe decepcionando, a começar pela desobediência de Adão e Eva, depois a barbaridade do evento envolvendo os irmãos Cain e Abel entre outros episódios sangrentos narrados na Bíblia até a crucificação de Cristo.
Por tudo isso, defendia que Deus tinha morrido, gradativamente, e se desintegrou na medida em que suas criaturas falharam com o propósito principal do ser: amar umas outras. Os templos erguidos em nome de Deus, portanto, eram inócuos e serviam apenas ao propósito de legitimar a exploração de uns sobre os outros e fortalecer o papel do clero na sociedade.
Bastou defender essas crenças que foi rotulado de louco, subversivo e acabou sendo internado por longos anos no hospício. Perdeu seus familiares, ficou sem vintém e agora dormia na escadaria sob a sombra da Igreja, sobrevivendo da caridade alheia.
Apesar de todas as intempéries, João confessou que espera ser ouvido com seriedade por alguém e acredita que um editor corajoso há de publicar suas ideias. Sua vida, dizia ele, dependia disso: demonstrar a validade de suas proposições e apresentar alternativas para uma nova organização espiritual da sociedade, sem igrejas, sem ritos, sem hierarquias, sem comércio religioso, sem dogmas e fanatismos que cegavam os indivíduos.
O espiritualismo pregado por João seria baseado em dois princípios: a fraternidade e o amor universal sem fronteiras de nações e de classes, eis aí o binômio divino que deveria ser cultuado pela humanidade.
Depois de ouvi-lo achei suas ideias bastante interessantes, embora perigosas, de fato, principalmente numa sociedade conservadora, cujas engrenagens políticas e religiosas funcionavam para preservar as desigualdades e não promover mudanças radicais nas estruturas de poder.
Me despedi, mas antes de seguir para a hospedaria deixei com ele algumas frutas e uns trocados, depois segui meu caminho.
Y. B. (1940)
Ele havia recebido alta depois de pagar muito dinheiro ao médico responsável pelo sanatório. O restante de seus bens havia sido confiscados pelas autoridades municipais por conta de dívidas com fisco, assim, esse cidadão chamado João havia caído em miséria e desgraça.
Quando pensei que a história havia terminado ele acrescentou que me contaria sua teoria sobre a morte de Deus, passou a citar diversas passagens das escrituras sagradas que demonstrariam o óbito divino. Segundo ele, a morte do Criador foi processual, ocorreu em etapas, na medida em que suas principais criações foram lhe decepcionando, a começar pela desobediência de Adão e Eva, depois a barbaridade do evento envolvendo os irmãos Cain e Abel entre outros episódios sangrentos narrados na Bíblia até a crucificação de Cristo.
Por tudo isso, defendia que Deus tinha morrido, gradativamente, e se desintegrou na medida em que suas criaturas falharam com o propósito principal do ser: amar umas outras. Os templos erguidos em nome de Deus, portanto, eram inócuos e serviam apenas ao propósito de legitimar a exploração de uns sobre os outros e fortalecer o papel do clero na sociedade.
Bastou defender essas crenças que foi rotulado de louco, subversivo e acabou sendo internado por longos anos no hospício. Perdeu seus familiares, ficou sem vintém e agora dormia na escadaria sob a sombra da Igreja, sobrevivendo da caridade alheia.
Apesar de todas as intempéries, João confessou que espera ser ouvido com seriedade por alguém e acredita que um editor corajoso há de publicar suas ideias. Sua vida, dizia ele, dependia disso: demonstrar a validade de suas proposições e apresentar alternativas para uma nova organização espiritual da sociedade, sem igrejas, sem ritos, sem hierarquias, sem comércio religioso, sem dogmas e fanatismos que cegavam os indivíduos.
O espiritualismo pregado por João seria baseado em dois princípios: a fraternidade e o amor universal sem fronteiras de nações e de classes, eis aí o binômio divino que deveria ser cultuado pela humanidade.
Depois de ouvi-lo achei suas ideias bastante interessantes, embora perigosas, de fato, principalmente numa sociedade conservadora, cujas engrenagens políticas e religiosas funcionavam para preservar as desigualdades e não promover mudanças radicais nas estruturas de poder.
Me despedi, mas antes de seguir para a hospedaria deixei com ele algumas frutas e uns trocados, depois segui meu caminho.
Y. B. (1940)
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