27.4.14

Os primeiros habitantes do atual território de Leopoldina (MG)

Parabéns, Leopoldina, pelos seus 160 anos!

Quando os europeus descobriram ouro no interior do Brasil, em fins do século XVII, havia na Capitania das Minas Gerais uma região conhecida como "sertão proibido". Essa localidade era coberta por densa mata e habitada por várias tribos "selvagens", as quais representavam um risco para a vida dos colonos europeus.
A região era uma área proibida visto que garimpeiros ilegais, poderiam usar o local para abrir trilhas, por onde escoariam metais preciosos sem o conhecimento do fisco.
Essa era a Zona da Mata Mineira.

Atual território de Leopoldina, em destaque.

Ela começou a ser desbravada por volta do século XVIII, quando os colonos tentavam encontrar novas terras para serem cultivadas e abrir novas rotas que ligassem as Minas ao Rio de Janeiro, facilitando o escoamento de mercadorias, sobretudo do ouro.
Painel de azulejos "O feijão cru". (Inspirado na obra de Funchal Garcia). O painel está localizado na Praça Félix Martins e retrata a lenda da colonização, iniciada por um acampamento de colonos à beira de um córrego local.
Por aqui, na área compreendida por Leopoldina, os primeiros habitantes foram os índios da tribo Puri (na língua dos Coroado, Puri significa "homens ousados"). Eles ocupavam um vasto território, que compreendia, além de Minas Gerais, parte do Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo. Mas não eram só os Puri que viviam aqui, também habitavam a Mata Mineira os Coroado (assim chamados pelos portugueses devido ao seu hábito de raspar os cabelos) e os Coropó. Os três grupos pertenciam ao tronco linguístico Macro-Jê. 
As primeiras informações sobre a existência dessas tribos remontam ao início da colonização portuguesa, no século XV, devido a ação dos exploradores e dos bandeirantes, os quais realizavam incursões ao interior da colônia e entravam em contato com os nativos.

Alguns dos primeiros habitantes da Zona da Mata mineira. Desenho de Rugendas - século XIX.

Leopoldina, situada no leste de Minas Gerais, contava com uma geografia - relevo e recursos naturais - favorável à formação de aldeias indígenas. As montanhas e a espessa vegetação garantiam proteção natural e alimento para os índios, como a caça e a coleta de frutos. A existência de rios na localidade, como o Pomba e o Pirapetinga, com águas tranquilas, permitiam a navegação em pequenas embarcações e a pesca.
 DEBRET, 1834. Cenário do Vale do Paraíba. A vegetação exuberante do Brasil despertava medo e admiração nos viajantes europeus.

Essas tribos eram nômades, não tinham moradia fixa, viviam vagando pela região, procurando por alimentos e melhores condições de caça e coleta. Eram considerados índios bravos e selvagens pelas autoridades coloniais, cujos agentes procuravam "civilizá-los", e convertê-los ao catolicismo.

Onça pintada abatida por grupo indígena. Enquanto uns preparam o fogo,  outros descansam em redes. Aqui o índio é mostrado perfeitamente adaptado à natureza hostil que o cerca.

Debret, artista francês que esteve no Brasil em 1816, retratou em diversas pinturas os índios, a fauna, a flora e a sociedade colonial daquele período, e também escreveu um livro, no qual registrou algumas observações sobre os índios da região dos sertões de Minas Gerais:

"não usam nenhuma vestimenta, nem mesmo em estado de civilização. Alimentam-se de caça e comem carne assada extremamente tostada". (DEBRET, 1989, p. 56-57 apud ALMEIDA, M. R. C. de, 2009.).

A respeito do aspecto físico dos Puri e dos Coroado, o barão de Eschwege, geólogo alemão que veio ao Brasil sob o patrocínio da Coroa portuguesa no século XIX, anotou o seguinte:

"As feições, ou melhor, o aspecto geral dos dois povos é muito semelhante, porém os puris tem traços faciais mais agradáveis que os coroado, que são mais feios..." (ESCHWEGE, 2002, p. 90 apud AGUIAR, J. O. 2010. p. 205.).

Nesse sentido, também temos o relato de outro viajante europeu o qual percorreu o Brasil nas primeiras décadas do século XIX, trata-se do naturalista francês, Auguste de Saint Hilaire, que descreveu um grupo de Coroados habitantes de uma área próxima do Rio Bonito:

“Pertenciam à tribo mais disforme da natureza encontrada durante minha permanência no Brasil. Aos traços da raça Americana, tão diferente da nossa, acresciam uma fealdade peculiar a sua nação: eram de estatura pequena; sua cabeça achatada em cima e de tamanho enorme, mergulhava em largas espáduas; uma nudez quase completa deixava a descoberto sua repelente sujeira; longos cabelos negros caiam em desordem sobre os ombros; a pele de um escuro baço, estava salpicada aqui e ali pelo urucu; percebia-se através de sua fisionomia algo de ignóbil, que não observei entre outros índios, e enfim, uma espécie de embaraço estúpido que traia a idéia de eles mesmos tinham de sua inferioridade.”(HILAIRE, 1975. p. 30 apud OLIVEIRA, R. B. de. p. 2.).  
Coroado e Botocudo. Viagem pelo Brasil, 1817-1820. Spix e Martius.

O naturalista francês deixa clara sua visão preconceituosa e eurocêntrica sobre os costumes e o porte físico dos Coroados. No seu registro, ele destaca a falta de higiene e o hábito de os nativos de pintarem o corpo com o urucu, fruto a partir do qual os índios obtinham uma tinta avermelhada que usavam para pintar o corpo.


A pintura corporal servia como um protetor solar, repelente contra insetos e tinha caráter estético, religioso e cultural. 
Como se sabe, os índios costumavam se banhar, diariamente, nos rios, onde nadavam e pescavam. O fato de os índios se banharem constantemente contraria a ideia do autor francês de que eles não tinham cuidado com a sua higiene. 

Aspectos econômicos, políticos, sociais e religioso

Esses grupos indígenas cultivavam pequenas roças de milho e de mandioca. Faziam bebidas a partir da fermentação do milho. Suas aldeias tinham cabanas erguidas com troncos de madeira, cobertas por folhas de árvores. As habitações eram coletivas, com capacidade para abrigar dezenas de pessoas.

Aldeia de Coroados. (Viagem pelo Brasil, 1817-1820. Spix e Martius)

As tribos tinham como líder o cacique, ele tomava as decisões após ouvir os conselhos dos homens mais experientes da tribo. Havia também o pajé, uma espécie de sacerdote e curandeiro, dotado de conhecimentos religiosos e mágicos.
Cultuavam vários deuses, portanto, eram politeístas.

Sobre a organização social e política dos Coroado, o já citado observador alemão do século XIX, em visita à Capitania de Minas Gerais, registra:

"São raríssimas as brigas desencadeadas para decidir a posse de algo, se pertence a um ou a outro, porque as diversas famílias que habitam em uma aldeia moram muito distantes umas das outras,muitas vezes horas, havendo pouco contato entre elas. As diferentes famílias, que contam às vezes 40 membros, obedecem geralmente ao mais velho. Vivem em perfeita comunhão de bens, constroem suas cabanas em mutirão, plantam pequenas roças e caçam juntos e desfrutam o resultado de seu trabalho coletivamente. Somente quando temem ataques dos bravos puris, ou quando querem atacá-los, todos se unem para a mesma finalidade." (ESCHWEGE, 2002, p. 101 apud AGUIAR, J. O., 2010.).

Como se percebe, não havia entre os povos indígenas uma noção de propriedade privada, tendo em vista que a terra era um bem coletivo e os alimentos eram repartidos entre todos os membros da comunidade.


A divisão do trabalho levava em conta o sexo, enquanto os homens caçavam e cuidavam da guerra, as mulheres preparavam os alimentos, coletavam vegetais e cuidavam das crianças.

A guerra entre esses diferentes povos indígenas era algo comum, já que vez ou outra acabavam disputando territórios entre si. Mas o principal motivo que provocava luta era a vingança. Os puri e os coroados eram rivais, suas batalhas eram violentas. Lutavam com arcos e flechas e tacapes de madeira. Os guerreiros também se enfeitavam com plumas de aves.


Índios em guerra. Gravura publicada no livro "Duas viagens ao Brasil", de Hans Staden (1557). 

O vencedor comemorava a vitória com rituais, como o descrito abaixo, quando um Coroado celebram a morte de um rival:

"O braço de um guerreiro puri morto na guerra é o maior símbolo de vitória para os coroado. As vitórias são comemoradas com uma festa, onde é servida com abundância a bebida fermentada feita com milho. O braço do puri morto passa de um para outro durante a dança e às vezes ele é colocado em pé e serve de alvo para as flechas. Outros o molham na bebida alcoólica, depois o molham e chupam-no e ainda o maltratam de toda a sorte, tudo isso ao som de hinos em louvor ao vitorioso e canções de repúdio e desprezo aos puris." (FAUSTO, 1999, p. 251-282 apud AGUIAR, J. O., 2010.).

Fim dos povos indígenas?

A intensificação do processo colonizador na região a partir da segunda metade do século XVIII, que provocou o surgimento de núcleos urbanos e a ampliação das áreas de cultivo e da pecuária, tornaram as terras um bem ainda mais precioso para os índios. Para tentar resistir ao avanço colonizador, alguns fugiam, vagavam por áreas mais interioranas, outros ficavam, morriam ou passavam a viver nas sesmarias.

O antropólogo Darcy Ribeiro (1995) enumera a tragédia que a colonização representou para os índios:
"A branquitude trazia da cárie dental à bexiga, à coqueluche, à tuberculose e o sarampo. Desencadeia‐se, ali, desde a primeira hora, uma guerra biológica implacável. De um lado, povos peneirados, nos séculos e milênios, por pestes a que sobreviveram e para as quais desenvolveram resistência. Do outro lado, povos indenes, indefesos, que começavam a morrer aos magotes. Assim é que a civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais. Depois, pela dizimação através de guerras de extermínio e da escravização." (RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 47)

A chegada dos colonos e o consequente aldeamento dos índios foi uma forma de pacificar os nativos. Nas aldeias, os índios eram catequizados, aprendiam técnicas agrícolas e artesanais aos moldes europeus e eram forçados a abandonar seus costumes, tais como a nudez, a poligamia e o culto às suas divindades naturais.

Aldeia tapuia. Rugendas - século XIX.

Aqueles nativos que tentassem resistir aos colonos enfrentavam a guerra justa, isto é, poderiam ser mortos ou capturados e escravizados pelas tropas coloniais.


Confronto entre índios e colonos. Rugendas. Século XIX. Os nativos tiravam proveito do conhecimento que tinham da vegetação e do relevo, para emboscar seus captores, com armadilhas e ataques surpresas. 

Índios capturados por bandeirantes e caçadores de escravos. Debret. Século XIX.

Mas a intenção do Governo Colonial era assimilar o índio à civilização que estava chegando aos sertões. Portanto, os aldeamentos, a mestiçagem e a realocação dos indígenas para trabalhar em terras coletivas se tornou a melhor opção para que Portugal concretizasse sua expansão territorial.

Os resultados da colonização já são bastante conhecidos por todos nós - índios dizimados pela guerra, pelas doenças, pela fome e pelo trabalho compulsório. A cultura indígena foi forçada a se adaptar aos costumes dos portugueses e mestiços e também às práticas do catolicismo. Logo, pouco restou da cultura original dos nativos, bem como detalhes de seus costumes e História.
Como esses povos indígenas não dominavam a escrita não deixaram registros, por isso muito do que sabemos sobre eles deve-se aos relatos de viajantes europeus e registros feitos pelas autoridades coloniais, os quais estão preservados em Arquivos Históricos. Entretanto, devemos fazer uma leitura crítica de tais documentos, pois muitos deles contém imprecisões, preconceitos e idealizações da visão europeia-dominadora sobre a terra e os povos dominados, os quais eram julgados exóticos, inferiores e selvagens.  Há também os achados arqueológicos, as fontes materiais, como urnas funerárias, restos de instrumentos e outros vestígios que são encontrados em sítios arqueológicos na região, que nos ajudam a recriar a vida e a cultura dos primeiros habitantes da Zona da Mata Mineira. (Para saber mais sobre arqueologia na Zona da Mata, acesse o site do Museu de Arqueologia e Etnologia Americana da UFJF).


Arqueólogos trabalhando em escavações na região metropolitana de Belo Horizonte (2012).
Todo o empenho em pesquisas e estudos regionais é compensador, pois elucida diversas questões relacionadas às nossas raízes étnicas, contribuindo para enriquecer ainda mais nossa História. O historiador Marco Morel nos lembra que: 
"Os contatos de cinco séculos entre os povos chamados de indígenas e os representantes da civilização ocidental nas terras brasílicas ocorreu entre grupos diversos de ambos as partes, gerando, ao lado de violências e guerras, interações e influências recíprocas. Não é a toa que estudos de genética das populações apontam que um terço da população considerada branca no Brasil atual possui ascendentes indígenas. Além de se constituírem como Outro, os índios somos nós, modificados ambos ao longo do tempo." (http://bndigital.bn.br/redememoria/pindigenasdocs.html)

Portanto, reconhecer a importância histórica dos povos indígenas, além de tantos outros grupos étnicos que compõe o povo brasileiro, é valorizar nossa identidade e admitir que ela é multifacética, rica e complexa.

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