11.9.13

A arte e o elogio ao mundo caipira (séculos XIX-XX)

O universo sertanejo sempre despertou grande interesse nas pessoas. O sertão ou o interior é visto por alguns como um recanto para descanso e o berço das raízes nacionais, para outros é associado, erroneamente, ao  atraso e à ignorância.
O tema é tão fascinante que a Arte não se cansa de representá-lo, seja em filmes, mini-séries, novelas ou letras musicais.

Antes de ganhar vida nos televisores ou no rádio, os sertões e sua gente permeavam o imaginário de artistas da pintura e da literatura nacionais no século XIX e XX. Nossa ideia é perceber a influência da cultura sertanista sobre a produção artística e literária de três vultos da cultura brasileira, que viveram em épocas distintas, mas que tinham uma fonte de inspiração comum. 

Comecemos por Almeida Júnior (1850-1899), que nasceu no interior do estado de São Paulo. Estudou na tradicional Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, onde aprendeu sua técnica de pintura realista primorosa. Por essa escola passaram nomes como Victor Meirelles, Pedro Américo dentre outros grandes artistas brasileiros entre a metade e o final do século XIX.

Boa parte dos artistas formados na Academia Imperial dedicavam seus trabalhos, pesquisas e produção artística à História. Muitos deles retratavam em suas telas temas históricos, fatos do passado, exaltando uma identidade nacional que o Estado brasileiro, a cada pincelada, tentava construir com base no heroísmo e na união das diferentes etnias que formavam o seu povo.

Mas Almeida Júnior, apesar de sua formação clássica, contrariou os ditames da arte acadêmica, voltando suas atenções também para os fatos cotidianos, típicos do interior paulista, onde crescera e, possivelmente, vivera deliciosos momentos. Muitas de suas obras são,  portanto, marcadas por um caráter regional, fruto de seu olhar nostálgico sobre o seu passado e o dia a dia das pessoas comuns que desfrutavam de uma vida tranquila no sertão paulista.
Pescando, 1894. Almeida Júnior.
As palavras do historiador Jorge Coli reforçam a proposta inovadora da arte de Almeida Júnior, quando afirma: "deve-se, então, sublinhar o seu caráter a tal ponto singular que o faz destoar de seus contemporâneos. Não existe, no pintor, nenhum apelo a uma qualquer eloqüência heróica, retratando o trabalhador diante de uma natureza épica, como o fazia, nos Estados Unidos, seu contemporâneo Homer. Nenhum efeito de exaltação retórica." (COLI, Jorge. A violência e o Caipira. disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2172/1311)

Um personagem marcante nas telas de Almeida Júnior é o caipira, como se vê, por exemplo, na reprodução abaixo.  
Caipira picando fumo, 1893.
Com expressões severas e um ar despreocupado com o tempo, o caipira prepara o fumo, cortando-o com sua faca, para envolvê-lo numa palha de milho, cujos exemplares estão espalhados pelo chão de terra batida.
Assentado num banco improvisado de madeira, com os pés descalços e trajes simples, o sertanejo está à frente de sua casa de pau a pique, um tipo de construção rudimentar muito comum do período colonial e imperial do Brasil, principalmente nas áreas rurais.

A beleza e a perfeição da obra saltam aos olhos. A iluminação, a perspectiva, o volume e as cores dão vida à tela e explicitam a genialidade do artista.


O caipira pintado por Almeida Júnior distanciava-se bastante de outro sertanejo bastante conhecido -  o Jeca Tatu - personagem criado e descrito no início do século XX, pela pena de Monteiro Lobato (1882-1948), também natural do interior paulista.
"...a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé."
O Jeca Tatu de Lobato, de forma pessimista e caricatural, denunciava o abandono das populações sertanejas pelo poder público. Ele representava indivíduos que viviam isolados nas áreas rurais, sem saneamento básico, adoecidos, agindo como predadores do solo e da natureza.  
A respeito do Jeca, seu criador diz: "Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé." (LOBATO, Monteiro. Urupês, São Paulo: Globo, 2009. p. 166).

Em suma, o Jeca era um entrave ao progresso nacional devido ao seu estado físico e social.

No final da história original do Jeca, porém, ele tem acesso a tratamento médico, se regenera e conclui seu caminho, tornando-se uma pessoa saudável, produtiva e um rico fazendeiro.

Na segunda metade do século XX, outro personagem interiorano tomou conta do imaginário coletivo de diversas gerações brasileiras.

Chico Bento, desenhado pela primeira vez em 1961 por Maurício de Sousa (1935-), cuja terra natal também é o estado de São Paulo, fez sucesso nas HQs (histórias em quadrinhos).


Chico bento, inspirado em um parente de seu criador que residia na zona rural no vale do Paraíba, a exemplo dos personagens citados anteriormente, anda descalço, veste roupas simples e usa chapéu de palha. Chico tem uma linguagem marcada pelo regionalismo, o que provocou certa polêmica entre estudiosos de ciências humanas e sociais. O idealizador do personagem foi acusado de criar estereótipos acerca da população sertaneja, como o falar errado, algo que a maioria dos linguistas atuais aceita como parte diversificada da língua pátria e as suas variações. 

O fato é que o caipirinha, divertido e simpático, conquistou o público infanto-juvenil devido às suas peripécias, pescarias, colheita de frutas no pomar do vizinho sem autorização e de sua dedicação em proteger a natureza e os animais.

O Caipira de Almeida Júnior, o Jeca de Monteiro Lobato e o Chico Bento de Maurício de Sousa são representações artísticas que possuem certas semelhanças e variam no tempo e no espaço. Elas nasceram das variadas experiências de seus criadores com parte do Universo sertanejo. Essas representações por vezes são generalizadas, tornam-se caricaturas e alimentam visões mais ou menos idealizadas do cotidiano dos habitantes dos sertões do Brasil. Em alguns casos serviram como argumentos para justificar pré-conceitos e visões distorcidas sobre o campo e sua população, que passaram a ser associados ao atraso, ao conservadorismo e a ignorância.

Contudo, tais associações são, no mínimo, equivocadas, pois a cultura não pode ser julgada, tampouco rotulada de "atrasada" ou "avançada". Mesmo identificando a permanência de tais equívocos em parte da opinião pública atual, a cultura sertaneja continua a exercer forte influência e interesse do público. 

Quem não se interessa pela vida simples do caipira, por sua rotina no campo, do contato e da relação que ele mantém com uma exuberante natureza, que lhe agracia com seus frutos e lhe ameaça com sua hostilidade? Quem não se derrete pela culinária da roça? Só de imaginar o frango caipira com quiabo, a broa de fubá e o aroma do café produzido in loco, o paladar, por mais exigente e sofisticado que seja, acaba se rendendo à simplicidade da comida preparada no fogão à lenha. Qual alma não encontra a paz na sinfonia orquestrada pela viola ou pelo doce gemido do carro de boi?

Jeca, Caipira ou Chico... seja qual for o personagem relacionado ao contexto interiorano e regional, seu mundo continuará seduzindo velhos e novos espectadores e leitores. Afinal, a cultura sertanista faz parte da cultura nacional. Na cidade grande, pequena ou no campo, o DNA do brasileiro carrega em sua essência o sertão. Rotular ou negar tal característica apenas reforça o óbvio - que, em pleno século XXI, somos caipiras por natureza.

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