19.10.17

Triatoma bacalaureatus - a maior doença do Brasil

Ao publicar o seu livro Problema Vital, em 1918, Monteiro Lobato reunia num só volume diversos artigos que escrevera nas páginas do Estadão tentando convencer as elites brasileiras acerca da necessidade de sanear o país.

A campanha pelo saneamento rural dos sertões brasileiros, lugar que para os poetas e autores românticos citadinos era descrito como "eden embalsamado de manacás" (p. 253), fora diagnosticado pelos médicos como um "imenso hospital".
Assim, a voz de Lobato unia-se à causa dos médicos sanitaristas, como Miguel Pereira, Arthur Neiva e Belisário Penna, todos defensores do higienismo e do saneamento do país.

A campanha médica era encarada pelos profissionais da saúde e por parte da imprensa como uma cruzada patriótica, pois era necessário erradicar as doenças, sobretudo a tríade maldita (Ancilostomose - Mal de Chagas - Malária) para pôr o povo de pé.

Lobato defendia que os higienistas se tornassem os protagonistas da república, substituindo o bacharelismo e a velha  classe política, a qual nada havia realizado em prol da população, por novos gestores competentes que fossem capazes de implementar uma política nacional de saúde. A base desta mudança era Manguinhos, onde Oswaldo Cruz havia estruturado um grande laboratório. Dele "tem vindo, vem, e virá a verdade que salva - essa verdade científica que sai núa de arrebiques do campo do miscroscopio" (p. 244).

Para o criador do Jeca Tatu a ciência e o microscópio, revelador dos micróbios e de bactérias, revelavam a verdade e podiam minimizar os males do povo. Se todas as doenças não eram curáveis, pelos menos eram evitáveis com a adoção de hábitos de higiene, medidas profiláticas, isolamento e tratamento de pessoas contaminadas e outras mudanças na cultura do povo.
Uma das mudanças preconizadas por Lobato dizia respeito sobre os métodos curativos populares, já criticados por ele em Urupês e retomados em Problema Vital. O autor atacou as crendices populares, as práticas curativas e os curandeiros, considerando essas medidas inócuas. Tais práticas representavam o obscurantismo e a ignorância  mediante a medicina científica, a qual deveria ser expandida por todos os rincões do país, afim de assegurar a nacionalidade, revitalizando milhões de brasileiros, livrando-os de sua condição doentia e improdutiva. 
Para os homens de sciencia era necessário combater o "charlatanismo", isto é, os curandeiros, práticos, herbalistas e todos aqueles que praticavam a medicina não institucional dentro do território nacional (Ver SCHWARCZ, 1993, p. 291). Desse modo, a medicina científica se afirmava perante a sociedade.
Em meio a um país de pessoas exangues, Lobato questionava a importância de se reformar a constituição, o código eleitoral ou fixar o serviço militar. Esses temas tomavam a atenção do Congresso, sobrepujando o debate sobre a saúde pública. Do que adiantaria aquelas discussões se a população dos sertões estava abandonada à própria sorte pelos bacharéis (Triatoma bacalaureatus) da república? Sanear, portanto, deveria ser a prioridade dos governos e dos particulares. Afinal, argumenta o criador do Sítio do Pica-pau Amarelo, a economia, as finanças, a justiça, a cidadania, a agricultura e a indústria dependiam primeiro da existência de um povo saudável.

Sem saúde, sem educação e abandonado pelo poder público, o caboclo, explorado pelos chefes locais, não tinha outra opção, senão recorrer à cachaça na tentativa de esquecer os seus problemas. A bebida, além de enfraquecer ainda mais um organismo já debilitado por germes causadores das patologias, causava além da degenerescência física e racial, desvios morais, como a demência e a criminalidade. 
Reverberando as palavras dos higienistas, Lobato decretou: "Sanear é a grande questão", e prossegue, só "a alta crescente do indice da saude coletiva trará a solução do problema economico, do problema imigratorio, do problema financeiro, do problema militar e do problema politico" (p. 272).

Entretanto, para desfazer a grande mazela nacional apontada na obra de Monteiro Lobato, urgia ao Brasil combater, paralelamente às doenças, outro mal - o parasitismo de nossa classe política, o Triatoma bacalaureatus, aqueles que "ousam tudo!" (p. 261).
O autor apontava que o "Brasil é a terra onde um parafuso qualquer da maquina governamental, prefeito de Camara ou ministro de Estado, tem o direito de "ousar tudo", escudado pela mais completa irresponsabilidade" (p. 261). Esses "parafusos" eram intocáveis, pois nada lhes acontecia, nem mesmo a justiça os punia por eventuais irregularidades cometidas no exercício do poder.  

A política havia virado "um privilegio restrito com feroz exclusivismo á casta dos mais audaciosos amorais" e se constituía num "fenomeno social consorciado ao estudo patologico da nação" (p. 262). Não havia vez e nem voz para o povo, tampouco para uma administração pública eficaz e racional. Vamos lembrar que na época em que publicou o mencionado livro predominava no cenário político brasileiro o "voto de cabresto", práticas coronelísticas e a questão social era vista como caso de polícia. Enfim, a cidadania era prerrogativa para poucos enquanto a maioria da população era escravizada para proveito e manutenção dos privilégios daqueles que ocupavam os cargos de poder.

Lobato considerava imoral o fato do "subjugado que se deixa espoliar sem um gesto de reação", mas o povo não reagia pois estava adoecido, incapaz de lutar e de resistir à opressão que lhe fora imposta. Logo, não se enxergava nas elites o interesse em curar e revigorar as populações sertanejas, pois que, uma vez saudáveis, poderiam se rebelar contra o jugo e a tirania. Eis o motivo para manter o povo doente, é o que nos sugere o autor, a existência de uma aliança natural de parasitas internos (micróbios) e externos (políticos). "Eis aí a trave maior oposta á ideia do saneamento, ideia só será vitoriosa em uma ou outra zona privilegiada do país" (p. 263).
Lobato estava certo nesse aspecto, somente áreas privilegiadas, como os centros políticos e financeiros importantes, Rio de Janeiro e São Paulo, os portos e, posteriormente, áreas rurais com valor econômico foram assistidas pelas campanhas sanitárias. Locais mais longínquos, com menos densidade demográfica e sem atividades econômicas relevantes para a balança comercial foram preteridos.

Monteiro Lobato foi um nome importantíssimo na campanha, incompleta, em prol do saneamento rural do Brasil. Seus artigos e seu livro reverberavam os dados levantados por médicos ligados à Manguinhos sobre a morbidade assustadora do povo brasileiro. Sua intenção, enquanto editor, publicista, autor, nacionalista e homem desejoso do desenvolvimento econômico era convencer a elite culta, letrada e política do país acerca da importância do higienismo e do saneamento. Teve êxito nessa empreitada. Antes, Lobato fora convencido pelos médicos e expoentes do movimento sanitário de que sem saúde o povo continuaria a "vegetar de cócoras" e o país jamais produziria a riqueza que se esperava de tão vasta nação. Esse processo foi crucial para a revisão da visão lobatiana sobre o sertanejo, que pode ser sintetizada na epígrafe "O Jéca não é assim; está assim". Com isso, acreditava que o homem brasileiro valeria tanto quanto um europeu, e se o elemento nacional produzia menos que o estrangeiro não era por conta de sua condição mestiça (questão da inferioridade racial), mas pelo abandono do governo brasileiro que não amparava o povo em suas mínimas necessidades, como saúde e educação.

Hoje, podemos apontar que a análise trazida a lume por Problema Vital era monocausal, bem como a solução para o problema apresentado na obra. Sabemos que devido à complexidade histórica da sociedade brasileira e das gritantes desigualdades regionais e sociais, medidas unilaterais são insuficientes para atender às demandas da população. Ações no campo da higiene e do saneamento são necessárias até os dias atuais em muitas cidades brasileiras, mas se não vierem acompanhadas de outras medidas governamentais, como investimentos em infra-estrutura, cultura, educação, trabalho, inclusão social, renda e justiça jamais serão capazes de superar nossas deficiências e colocar o Brasil nos trilhos do pleno desenvolvimento.   



LOBATO, José Bento Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e Problema vital. São Paulo: Editora Brasiliense, 1951.

4 comentários:

  1. Como Monteiro Lobato era sábio, se nos dias atuais tivéssemos um Lobato no governo, com certeza a história seria outra e não teríamos tantos Jeca Tatu como temos hoje.

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    1. Pois é Soninha, Lobato era genial, de fato. Não creio que seria um homem de governo, pois ele preferia lançar ideias. Mas se a classe parasitária que nos governa soubesse abraçar boas ideias, tal como algumas daqueles defendidas por Lobato em seu tempo, como a valorização da leitura, a fundação de escolas técnicas, o saneamento, o investimento na indústria, na extração do ferro e do petróleo, teríamos um pais melhor, sem dúvida.

      Um abraço.

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  2. Ótimo texto e muito oportuno no momento que um governo despreparado afunda o país na saúde pública.

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Obrigado pelo comentário.