26.5.16

Respostas de um operário que lê

Esta singela crônica é um pequeno tratado de política para as crianças. Leia com atenção!

Num dia qualquer, Paulinho retorna para sua casa, após o fim das aulas, ao cair da tarde. No lar, ele encontra o pai, assentado no sofá folheando o jornal, e a mãe, preparando uma deliciosa sopa para o jantar.

O menino deixa a mochila cair de suas costas e brada:

- Mãe, a professora falou na aula que não devemos jamais eleger políticos da "esquerda", porque são todos comunistas e arruaceiros!

A mãe levou um susto, devido à entonação e ao teor do assunto, mas continuou a fatiar uma cenoura. Ela terminou a tarefa e, sem seguida, voltou-se para o garoto e questionou:

- É mesmo? E em que ela acha que devemos votar?  

- Ela disse para votarmos nos políticos da "direita", pois eles se dizem honestos e respeitam as leis, além de se preocuparem com o crescimento econômico do país, com os gastos públicos e com o aumento das exportações._ respondeu Paulinho.

O pai estava assentado na sala, relaxando após uma jornada na fábrica, e ouvindo a conversa do filho com a esposa, soltou um grito e interviu no assunto:

- O ÚNICO CRESCIMENTO COM QUE A "DIREITA" SE PREOCUPA É COM O VOLUME DO DINHEIRO DOS PRÓPRIOS BOLSOS.

Paulinho coçou a cabeça, refletiu um pouco. Ficou confuso e desorientado ao ouvir a informação do pai. A mãe, percebendo a confusão do filho, e com a ternura que lhe é peculiar, largou a tarefa, lavou as mãos, secou e segurou Paulinho pelo rosto, fitando-lhe os olhos.

- Meu filho, esses políticos da "direita", na maior parte das vezes, são representantes dos agentes econômicos do país, do grande empresariado, dos fazendeiros, produtores rurais, dos industriais e dos banqueiros. Eles não se preocupam com a vida dos mais pobres e sim em aumentar seus bens e riquezas.

O pai chega até a cozinha e completa:

- Sua mãe está certa. A sua professora lhe disse que no mundo, em 2016, foi constatado que apenas 1% da população tem mais dinheiro do que os outros 99% juntos? E ela também disse que, dentro desse grupo dos 99%, a maior parte da riqueza se concentra nas mãos de apenas 20% das pessoas, deixando a maioria da população mundial com a menor parte do patrimônio?

Paulinho levou um assusto, arregalou os olhos e acenou negativamente com a cabeça.

A mãe de Paulinho explicou:

- O nome disso é desigualdade, filho. Ela é resultado de um longo processo histórico de exploração dos mais pobres pelos mais ricos. No passado, vários intelectuais, sindicalistas e trabalhadores denunciaram essa situação e começaram a reivindicar mudanças, mas as elites logo reagiram, tentando silenciar a rebelião dos oprimidos. Houve radicalismos, guerras e matanças, e vários governos tentaram limitar os direitos dos trabalhadores, proibindo greves e sindicatos, por exemplo. Alguns avanços foram conquistados, mas ainda há muito por conquistar.

-Mamãe, a professora disse que greve é coisa de gente à toa que não tem mais o que fazer e só quer saber de fazer anarquia._ retrucou Paulinho.

- Paulinho, infelizmente sua professora não sabe o que fala. A greve é um direito de todo trabalhador. Ela é um instrumento para cobrar melhorias trabalhistas. Esse discurso adotado por alguns e muito difundido na Imprensa tenta enfraquecer os movimentos sindicais e convencer a opinião pública de que está tudo bem, quando na realidade serve apenas para preservar a ordem vigente, assegurando os privilégios dos poderosos e mantendo o povo submisso.

- Ora mãe, então a "esquerda" é contra a desigualdade?_ pergunta o garoto entusiasmado.

- Normalmente sim, os políticos de "esquerda" são aqueles que possuem representatividade nas bases sociais, nos movimentos operários, nos trabalhadores do campo, enfim, seu compromisso é com as classes populares, que formam a maior parte da população. Então, quando eleitos, eles tendem a representar os interesses do povo e não do grande empresariado do país. Procuram minimizar as desigualdades, por meio de políticas públicas e programas sociais na área de saúde, saneamento, educação, emprego e renda.

- Puxa, então a "esquerda" é perfeita, eu já sei qual lado escolher quando eu puder votar! _ exalta o garoto.

- Tenha calma, meu filho!_ advertiu o pai. Longe de ser perfeita, a "esquerda" cometeu e comete tantos erros quanto a "direita", às vezes elas até se aliam para atingir objetivos comuns. A diferença é que governos de "esquerda" que defendem a democracia usam o poder para promover a distribuição de renda, fortalecer direitos trabalhistas e garantias sociais, enquanto a "direita" quer apenas usar o governo para subtrair direitos dos trabalhadores e fazer a economia do país crescer, sem se preocupar com o desenvolvimento social ou investimentos em saúde e educação, por exemplo. Um governo só será bom se cada cidadão exercer o seu papel, cobrar e fiscalizar as ações de seus representantes eleitos. 

Nesse momento, a mãe emendou dizendo: 

- Filho, tão importante quanto o lado que se escolhe na política, "esquerda" ou "direita", é o caráter do indivíduo que exercerá um mandato eletivo. É importante pesquisar sua trajetória, verificar se é íntegro, honesto e descobrir quais setores sociais ele representa e quais compromissos irá defender quando for eleito. E, como seu pai lembrou, nós temos que cobrar dos políticos medidas que favoreçam a democracia, a inclusão e a coletividade, e não apenas os mais ricos, além de transparência e eficiência nas ações do governo! 

- Acho que tô começando a entender. _ disse Paulinho, com os dedos segurando o queixo e uma expressão investigativa.  

- Não há porque ficar preocupado com isso por enquanto, você ainda é uma criança e terá muito tempo para escolher o que achar melhor na hora de votar. Mas lembre-se de refletir sobre qual lado irá lhe representar melhor no governo. Agora vá se lavar para jantarmos -  concluiu a mãe.

O mais célebre de todos os urupês

Segundo o Dicionário Aulete, on-line, urupê é um "Fungo sapróbio da fam. das poliporáceas (Pycnoporus sanguineus), que se desenvolve sobre troncos caídos e cujo corpo de frutificação é semicircular, vermelho-alaranjado; ORELHA-DE-PAU".

O urupê é bastante comum em áreas úmidas e de vegetação abundante, como matas e bosques de regiões de clima tropical. Assumindo formato de orelha, ele cresce sobre o tronco de madeira,  alimentando-se de matéria morta. Sua presença pode servir como um indicador de saúde, ou falta dela, no estado físico das árvores.

Embora tenha uma função biológica e, portanto, um papel a cumprir na natureza, o urupê se tornou conhecido e famoso no país, sem dúvida, após 23 de dezembro de 1914, quando Monteiro Lobato publicou um artigo, intitulado Urupês, nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo.

O texto tratava sobre o caboclo, uma das raças que compunham a nacionalidade brasileira que existia “a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé”[1]. A publicação causou alguma repercussão sendo inclusive reproduzida em outros periódicos assegurando notoriedade ao escritor paulista, além de reconhecimento no círculo cultural da elite de São Paulo. Em Urupês, Lobato, fugindo da tradição romântica e ufanista [2] do início do século XX, que sob pretexto do nacionalismo, idealizava o caboclo e seu estilo de vida, adota um viés realista, denunciando o estado de isolamento das populações sertanejas, abandonadas à própria sorte pelos bacharéis da república. Em tom caricatural, ele descreveu o Jeca Tatu, doente, racialmente incapaz de progresso, que vivia a vegetar de cócoras, e nesse aspecto compara, de modo mais evidente, o homem ao fungo.  Tal como o urupê que nada produzia, pois alimentava-se da matéria que extraía da madeira, o Jeca não lavrava, não construía era o "sacerdote da Grande Lei do Menor Esforço", apenas sobrevivia, parasitando aqui e acolá, acocorava-se. 

A ideia de escrever sobre esse personagem não surgiu num passe de mágica, ela foi resultado da experiência dos anos em que Lobato morou na fazenda Buquira, no Vale do Paraíba, deixada como herança do avô, onde pode observar os hábitos do povo do interior - os caipiras.  A esse respeito, na medida em que as ideias iam surgindo elas "amadureciam, resultavam em contos maciços, carregados de sua revolta e, consequentemente, de críticas."[3]. O trabalho que marcou sua iniciativa de escrever sobre o homem do campo veio com a publicação de uma queixa no jornal, em 12 de novembro de 1914, Uma Velha Praga. Por meio dela, o autor denunciava a prática das queimadas imputando ao caboclo a autoria do delito, que devastava a natureza e trazia enormes prejuízos. Nesse texto, também utilizou o recurso da metáfora, comparando a ação do caboclo a do piolho. O parasita provocava a “pelada” no couro cabeludo, o caboclo era o “piolho da terra” que despojava o solo de sua cobertura natural com os incêndios.

Em correspondência enviada à Rangel, em 22 novembro de 1914, Lobato dava indícios do artigo que viria no jornal do mês seguinte: “Outro feto que já me dá pontapés no útero é a simbiose do caboclo e da terra, o caboclo considerado o mata-pau da terra: constritor e parasitário, aliado do sapé e da samambaia, um homem baldio – inadaptável à civilização.”[4].   

Na carta, Lobato narra a relação parasitária estabelecida entre o homem e o meio, uma simbiose, que resultava na devastação da terra pelo "mata-pau".  Assim, o caboclo, pintado nas linhas de Lobato, "é o urupê de pau podre que vegeta no sombrio da mata".[5] Nessa concepção, o Jeca era nocivo à natureza, pois ele colocava fogo na mata, arrancava a cobertura original do solo e destruía o húmus e os seus sais mineiras, aí estava, portanto, o culpado pelas desgraças locais! 

Entretanto, esse pensamento não foi exclusivo do autor, ele era compartilhado pelas elites locais, senhores de terras e cafeicultores decadentes, insatisfeitos com os infortúnios econômicos que lhes abatiam, responsabilizavam os "jecas" pelo empobrecimento da região. Sendo assim, desconsideravam o processo histórico de ocupação das terras do Vale as quais, desde o final do século XIX, davam sinais de esgotamento devido a alguns fatores, como a monocultura predatória, a falta de investimentos em novas técnicas de cultivo, a ausência de mão de obra qualificada, e a instabilidade do mercado que fazia o preço do café flutuar. Enquanto essa região definhava, outra despontava,  era o Oeste paulista, novo eixo agrário-exportador, onde havia a linha férrea, o imigrante europeu e a fértil terra roxa.


O emprego da palavra "Urupês" por Lobato, contudo, ocorreu pela primeira vez anos antes de publicar seu referido artigo. Quando ainda vivia em Areias, cidade do interior do estado paulista, atuava como Promotor público quando decidiu advogar por uma causa, "a primeira e única que se tem notícia de suas atividades como bacharel em Ciências Jurídicas."[6] Na causa, Lobato defendia uma firma, da qual o autor cobrava o pagamento de uma dívida. Foi no dia 18 de novembro de 1907, que no texto da defesa, Lobato utilizou a expressão urupê, vocábulo que lhe trará reconhecimento alguns anos mais tarde, nas razões da peça jurídica, alegando que "os absurdos (contidos nas acusações aos seus clientes) brotarão como urupês em pau podre, após um dia de chuva" [7]. Entretanto, o encontro de Lobato com essa espécie do reino fungi, provavelmente, se deu em sua infância, por volta dos cinco anos de idade, quando acompanhava o seu pai em caçadas na floresta. Seu biógrafo oficial narrou assim as impressões que a experiência causou em Lobato: "O sombrio da mata, aquêle frescor úmido, os troncos musguentos que lhe pareciam gigantescos, a cipoama enredada, o silêncio..." [8] (grifos nossos). Eis aí o primeiro contato de Lobato com a natureza, que deixou marcas profundas em sua alma tanto marcou sua obra, adulta e infantil. Mesmo quando adulto, Lobato deve ter continuado a se deparar com os urupês quando fazia incursões à Serra da Bocaina, para abater jacus, enquanto esgueirava-se entre o mato e os galhos seria possível observar a forma curiosa de uma "orelha" que crescia às custas da seiva de uma árvore. Tais encontros devem ter inspirado a metáfora e reforçado a ideia do autor de comparar a vida do campônio à daquele fungo em seus registros posteriores. 

Depois de usá-la no seu texto de 1914, a expressão foi evocada pelo escritor novamente em 1918, dando nome ao seu primeiro livro de contos, editado pela Revista do Brasil. A ideia inicial do título era “Dez Mortes Trágicas”, mas o autor foi aconselhado pelo amigo Artur Neiva, médico sanitarista, a trocar-lhe o nome por Urupês.  A obra se tornou uma campeã de vendas e, entre o ano de seu lançamento a 1925, esgotou 30 mil exemplares, popularizando ainda mais o autor e o seu célebre personagem - o Jeca.

Capa de 1918, ilustrada por J. Wasth Rodrigues.

O livro obteve grande repercussão, não só entre os letrados, mas também entre o meio político. No meio literário, vários escritores publicaram trabalhos questionando o "tipo" fixado pelo Jeca e criticando Lobato, acusando-o de antinacionalista [9]. Na esfera política, as reações também foram diversas e provocaram acalorados debates entre parlamentares. O deputado cearense Ildefonso Albano, por exemplo, criou o Mané Chique-Chique, que para ele era como uma "rocha viva da nacionalidade", o oposto do Jeca. No Sul, havia o Jeca Leão, figura descrita por Rocha Pombo "cheia de inúmeras virtudes e de nenhum defeito." [10] Até o oposicionista Rui Barbosa, na campanha presidencial de 1919, lançou mão da imagem do Jeca em um de seus discursos para atacar o modus operandi da república  no seu trato com o povo interiorano [11]. O fato é que o personagem literário tornou-se um símbolo da nacionalidade na medida em que logrou êxito ao se contrapor à visão romântica da população sertaneja, oriunda de uma tradição ufanista que idealizava o caipira. Apesar do personagem literário ter sido originado de "um olhar patronal, desabafo do fazendeiro frustrado e insatisfeito, ou sendo uma sátira de intenção desmistifcadora, ou mesmo as duas coisas juntas, o Jeca tatu se constitui no registro hiperbólico, mas autêntico, de facetas do caipira que não deixavam de trazer sua verdade."  (LEITE, 1996, p. 78).  Sendo o Jeca uma construção caricatural, ela serviu para desmascarar e denunciar uma forma de vida negligenciada e com costumes considerados impróprios para setores de uma elite que anseava pela modernização do país e das relações de trabalho. Mesmo que, a princípio, a reflexão proporcionada por ela se detivesse apenas sobre a apresentação do problema, sem se preocupar as causas, isso será superado posteriormente, quando o seu criador irá repensar a personagem a partir da identificação dos motivos que lhe afligiam.

Desde a divulgação do artigo em 1914, o Jeca Tatu de Urupês, passou a representar toda uma população sertaneja, interiorana, e tornou-se uma bandeira do movimento em prol do saneamento das áreas rurais brasileiras, onde grassavam as doenças que impediam o progresso nacional. Se inicialmente o caboclo era visto como racialmente inapto para o trabalho e para o desenvolvimento, Lobato mudou sua concepção do sertanejo após ter contato com as prédicas médico-científicas, em 1916, resultado da campanha do saneamento do Brasil, que diagnosticou os brasileiros como um povo doente. Por isso, seu criador afirmou posteriormente que "o Jeca não é assim, está assim", referindo-se ao seu estado fúnebre. A medicina convencera Lobato de que o Jeca era incapaz não por sua origem racial mestiça, mas porque estava "provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte." [12]

Constatado que o problema do povo era a doença, Lobato engajou-se na campanha sanitarista, principalmente, pela imprensa, tornando público um debate acadêmico - o saneamento rural. A partir daí, usou o Jeca que virou garoto propaganda de remédio, o tônico Fontoura, depois o personagem passou à cartilha para escolas e para crianças, na tentativa de modificar os maus hábitos dos brasileiros do campo, como por exemplo, o de andar descalço,  deixando os pés desnudos em contato com a terra e vulneráveis à contaminação por bactérias. 

Almanaque do Biotônico, 1935 (Ilustração: J.U.Campos). Site invivo.

Em suma, o personagem foi transformado num instrumento de catecismo a favor do sanitarismo e do higienismo defendidos pelas elites médicas e intelectuais do país. A obra Urupês continuou a ser editada por muitos anos, reforçada, posteriormente, por produções no cinema e na televisão, o que contribuiu para cristalizar a figura do Jeca no imaginário das pessoas. Até os dias de hoje, o Jeca continua alimentando causos e estórias na cultura popular, fazendo parte de festejos e celebrações que ocorrem por todo o país, como as festas juninas, nas quais são realizadas o casamento do Jeca. 



O personagem promoveu uma associação, de forma generalizada e talvez equivocada, entre a população rural e a ignorância e ao atraso, mas serviu para denunciar o abandono e o pouco caso dos governos com a saúde pública e os sertões do Brasil. Também alçou Monteiro Lobato a um patamar atingido por pouquíssimos escritores - a aceitação e preferência do público, além de garantir sua imortalidade na literatura nacional.




[1] LOBATO, MONTEIRO. Urupês. São Paulo: Globo, 2009. p. 169.
[2] Lobato acusava os autores românticos de idealizarem e desnaturalizarem o caboclo e o mundo rural, pois esses escritores escreviam da cidade e estavam afastados da realidade do homem do campo.

[3] GARCIA, Juliana Cristina. Monteiro Lobato: contista e editor. 2013. 150 p. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão. Programa de Pós-Graduação em Literatura.Florianópolis, SC, 2013. p. 86.
[4] LOBATO, MONTEIRO. A barca de Gleyre. São Paulo: Globo, 2010. p. 293. 
[5] CAVALHEIRO, EDGAR. Monteiro Lobato: vida e obra. São Paulo: Companhia Distribuidora de Livros. 1955, p. 177.
[6] Idem, p. 135.
[7] idem. p. 136.
[10] idem, p. 211.
[11] “Senhores: Conheceis, porventura, o Jeca Tatu, dos Urupês, de Monteiro Lobato, o admirável escritor paulista? Tivestes, algum dia, ocasião de ver surgir, debaixo desse pincel de uma arte rara, na sua rudeza, aquele tipo de uma raça que, “entre as formadoras da nossa nacionalidade”, se perpetua, “a vegetar de cócoras, incapaz de evolução e impenetrável ao progresso”? Rui Barbosa. “A questão social e política no Brasil”, conferência pronunciada no Teatro Lírico do Rio de Janeiro a 20 de março de 1919. Campanha Presidencial. Obras completas de Rui Barbosa, Volume XLVI 919, Tomo I. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, 1956, p. 63.
[12] Prefácio da Quarta edição de Urupês, 1918.

16.5.16

6.5.16

As raízes do Terror

O mundo assiste pasmo aos intermináveis e sangrentos conflitos no Oriente Médio.

Em 2013, o grupo jihadista Estado Islâmico iniciou um ofensiva armada que resultou no domínio de territórios no Iraque e na Síria. Investindo contra as tropas desses países, declaram um califado, um governo independente, agindo com violência, destruindo locais históricos, assassinado jornalistas e civis. Uma coalização internacional, liderada por EUA e França tentam conter o Estado Islâmico, mas se opõe ao governo ditatorial da Síria. Do outro lado, a Rússia, que apoia o governo sírio, ataca, simultaneamente,  os jihadistas e os opositores do presidente Bashar al-Assad. 


Hospital em cidade da Síria foi acertado em bombardeios.

A guerra no Oriente Médio é brutal e as bombas não diferenciam militares de civis, homens, de mulheres e nem idosos de crianças, todos são alvos da intolerância religiosa e do radicalismo político que assola a região. 

Muitos sobreviventes do horror das guerras têm buscado refúgio na imigração, tentando entrar ilegalmente na Europa. Preferem enfrentar o mar, em embarcações superlotadas, num sonho dantesco, a se arriscar com os estilhaços de granadas que cortam o céu da terra natal. No mar outra guerra, naufrágios, o frio, a fome e a barreira da lei que restringe a entrada de imigrantes no Velho Mundo. O drama ganha contornos de tragédia e realça o sofrimento de pessoas desemparadas e esquecidas.


Imigrantes refugiados de guerra são abordados por autoridades no mar Mediterrâneo.

No ano passado, o conflito provocado no Oriente Médio chegou efetivamente ao solo europeu com os ataques contra a França, uma das principais rivais do Estado Islâmico, deixando mais de uma centena de mortos em Paris. O grupo islâmico assumiu a responsabilidade pelo atentado, como retaliação à França por participar de bombardeios contra alvos na Síria e no Iraque sob controle dos jihadistas.


Ataques do Estado Islâmico em Paris, 2015.

Como resposta, o atual presidente da França, François Hollande, em discurso ao seu povo, evocou o aspecto cultural para contrapor franceses e árabes e justificar a ofensiva do Ocidente no Oriente Médio. 

"Nenhum bárbaro vai nos impedir de viver como decidimos viver. O terrorismo não vai destruir a República porque a República vai destruir o terrorismo" (Discurso presidencial em 16/11/2015).


Destacamos a expressão "bárbaro", pois ela possui um forte significado identitário. O emprego desse termo objetiva criar um sentimento nacional contra um inimigo comum - os bárbaros, os terroristas, os inimigos vis e cruéis. No passado europeu, a palavra "bárbaro" legitimou invasões, conquistas e a escravidão.  

A História pode nos ajudar a compreender o porque de tanto ódio entre os povos do Ocidente e do Oriente ao investigar e explicitar a origem da barbárie.

É importante ressaltar que o Oriente sempre atraiu a atenção dos povos da Europa Ocidental desde a Antiguidade. Alexandre Magno conquistou a Babilônia no século IV a. C. e estendeu os seus limites até a Índia, depois foi a vez do Império romano tentar conquistar a Pérsia e tomar a Palestina como uma de suas províncias, no século I a. C. 

O Império islâmico iniciado no século VII se expandiu com força e velocidade pela Ásia, África e Europa, onde ocupou a Península Ibérica até o século XV. Ele se tornou um obstáculo à civilização europeia e uma ameaça a cristandade e só foi refreado no ano 732, na Batalha de Poitiers (França) quando os francos obtiveram vitória militar sobre os árabes.

Mapa da Europa Medieval representa a cidade de Jerusalém no centro do mundo.

Ao longo da Idade Média, o interesse da Europa sobre o Oriente não diminuiu. A Igreja Católica organizou as Cruzadas para tomar Jerusalém, local sagrado para os cristãos, dos muçulmanos, os quais dominavam a região desde o ano 638.
Em 1095, o papa Urbano II conclamou a cristandade a lutar contra os árabes na Terra Santa.  No seu discurso o papa exaltava:

"Lutem contra a amaldiçoada raça que avilta a terra sagrada, Jerusalém, fértil acima de todas as outras. [...] Marchem certos da expiação de seus pecados, na certeza da glória imortal."

O papa chama de "amaldiçoada" as pessoas não-cristãs que vivam e ocupavamm a terra santa. Ele também ressalta em seu discurso que aqueles cristãos que morrerem na luta por Jerusalém terão seus pecados perdoados e a "glória imortal". Numa época marcada por fervor religioso, a possibilidade de obter a redenção dos pecados e vida eterna era um forte argumento para mobilizar homens e justificar uma guerra.

Cristãos cercam a cidade de Acre, em Israel. Século XII.

As consequências das Cruzadas foram terríveis e as expedições militares promoveram um banho de sangue, opondo cristãos e muçulmanos. Leia o relato de um muçulmano, que observou a selvageria do confronto.


Os exilados ainda tremem cada vez que falam nisso, seu olhar se esfria como se eles ainda tivessem diante dos olhos aqueles guerreiros louros, protegidos de armaduras, que espelham pelas ruas o sabre cortante, desembainhado, degolando homens, mulheres e crianças, pilhando as casas, saqueando as mesquitas.

Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos árabes.
2.ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1989 (com adaptações).
  

No trecho, fica claro que nem mulheres e crianças eram polpadas na guerra, assim como os locais sagrados, os quais eram saqueados em nome do fanatismo religioso. Importante destacar que os massacres e a covardia ocorriam dos dois lados, tanto dos cristãos quanto dos muçulmanos. Observe o relato a seguir, o qual registra a violência perpetrada pelos árabes:  


Os cruzados avançavam em silêncio, encontrando por todas as partes ossadas humanas, trapos e bandeiras.
No meio desse quadro sinistro, não puderam ver, sem estremecer de dor, o acampamento onde Gauthier havia deixado as mulheres e crianças. Lá, os cristãos tinham sido surpreendidos pelos muçulmanos, mesmo no momento em que os sacerdotes celebravam o sacrifício da Missa. As mulheres, as crianças, os velhos, todos os que a fraqueza ou a doença conservava sob as tendas,  perseguidos até os altares, tinham sido levados para a escravidão ou imolados por um inimigo cruel. A multidão dos cristãos, massacrada naquele lugar, tinha ficado sem sepultura.

J. F. Michaud. História das cruzadas. São Paulo:

Editora das Américas, 1956 (com adaptações).



Na Idade Moderna, com o advento das Grandes navegações, os europeus tinham por objetivo descobrir uma nova rota marítima até o Oriente, para chegar à fonte das preciosas especiarias orientais. O período assistiu à continuidade dos conflitos entre cristãos e muçulmanos, no norte da África e na Ásia. 

Mesmo na Idade Contemporânea a cobiça europeia sobre o Oriente não cessou. 
O Oriente Médio, possui uma posição geográfica estratégica, pois conecta a Europa à Rússia, à China e aos demais países asiáticos, é uma região rica em petróleo, mineral descoberto na primeira década do século XX, o que por si já é um grande atrativo para as potências imperialistas. 

Por isso, os países europeus, principalmente a França e  a Inglaterra, mantiveram o Oriente Médio sob seu protetorado por muito tempo. Alguns países só conseguiram se libertar do domínio europeu em meados do século XX, caso do Líbano e da Jordânia, em 1946. 

Apesar das lutas por independência, a região continuou sendo disputada, e, na segunda metade do século XX, era alvo da Guerra Fria entre as duas superpotências - EUA e URSS. Nesse momento histórico, soviéticos e norte-americanos armaram os povos do Oriente Médio a seu bel-prazer, segundo os interesses geopolíticos das duas potências mundiais sob o território.


Guerra Fria polarizou a disputa pela hegemonia mundial entre EUA e URSS.

Assim, foi comum o envio de armas para grupos étnicos lutarem contra os governos locais, dando início às guerras civis para tomar o poder e instaurar uma nova ordem mais favorável aos EUA ou à URSS. Isso acentuou a tensão regional, disseminou o ódio entre grupos étnicos distintos, caso dos sunitas e xiitas, o que alterou o equilíbrio de forças, agravando a instabilidade regional.
Foi a conivência e o apoio das duas superpotências da Guerra Fria que favoreceu o surgimento das células terroristas, as quais equipadas e treinadas por agentes norte-americanos ou russos, acabavam se voltando contra seus patrocinadores e passavam a agir de acordo com seus próprios propósitos.

Com o esfacelamento da União Soviética em 1991, os norte-americanos sedimentaram sua posição política no Oriente Médio através de alianças firmadas com Israel e Arábia Saudita, por exemplo.
Contudo, as guerras prosseguiram. Os norte-americanos invadiram o Iraque duas vezes, a primeira em 1991, a última em 2003.  


Soldados norte-americanos invadem o Iraque (2003).

No século XXI, os EUA alegando cumprir o seu papel de liderança mundial, pretensamente agindo em nome da liberdade e da democracia, assim justificou a invasão do território iraquiano:

"Meus companheiros cidadãos, os perigos sobre nosso país e o mundo serão superados. Nós transpassaremos esse momento de risco e continuaremos com o trabalho pela paz. Nós defenderemos nossa liberdade. Nós traremos liberdade para os outros. E nós venceremos.
Que Deus abençoe nosso país e todos que o defendem."
 

(Discurso do presidente Goerge W. Bush, 2003).

A liberdade a qual o presidente norte-americano se referiu parece ser um conceito distante para os povos do Oriente Médio, especificamente os do Iraque,  cujo governo foi destituído pelas tropas dos EUA na última Guerra do Golfo. Agora, o Iraque é assolado por conflitos envolvendo grupos separatistas, os povos curdos e os ataques do Estado Islâmico. Em suma, a cada intervenção política e militar das potências Ocidentais no Oriente Médio, novos confrontos são fomentados, aumentando a violência e a intolerância no local e também no Mundo. As ações militares equivocadas do Ocidente no Oriente Médio geraram consequências, como os ataques promovidos pelo grupo Al Qaeda contra os EUA, em 11/09/2001 e os atentados do Estado Islâmico contra a França, em 13/11/2015. 


Os EUA foram atacados pela Al-Qaeda em 11/09/2001.

Enquanto predominar no Ocidente a incompreensão das complexidades culturais dos povos orientais e a manutenção de estratégias desastrosas, como a tentativa dos EUA de   impor sua hegemonia sob o local a qualquer custo, novos conflitos continuarão a ocorrer no Oriente Médio e também nos países que tentam submetê-lo ao seu domínio. Portanto, toda essa história possibilita enxergar os erros cometidos no passado e traz uma oportunidade para refletir e corrigir os rumos do presente. Assim, talvez seja possível construir um futuro sem tantas atrocidades, sem derramamento de sangue em nome da fé e da ganância cega que continua provocando tanta carnificina.