24.9.16

Heróis não usam capas

_Acorda, filho, tá na hora.
Eram três e meia da madrugada quando papai me despertou do sono. A cama estava quentinha, relutei para me desfazer do velho e aconchegante cobertor de algodão com retalhos que mamãe coseu para mim, mas me levantei, pois chegara o dia em que iria prestar os exames para obter minha carteira de motorista. Se passasse nas provas, enfim, poderia dirigir.
Iria dirigir não por prazer ou por lazer, mas porque trabalhava na cidade e, morando na roça, ficava distante de meu trabalho. Portanto, saber conduzir um carro me ajudaria e muito. 

Naquela manhã fazia frio, chovia e a luz elétrica fraca e amarelada mal iluminava o meu quarto. Tivemos que acordar cedo, pois o exame de habilitação teria que ser feito em outra cidade, no estado do Rio de Janeiro, daí, no dia seguinte, combinamos levantar da cama antes mesmo que as galinhas começassem a deixar os poleiros para ciscar no terreiro atrás de pequenos insetos, musgo e minhocas.

Fui para o banheiro, enquanto eu lavava o rosto e escovava os dentes, papai preparava um garrafão que enchia de leite e café, cujo grãos haviam sido torrados ali mesmo há pouco tempo e agora seu aroma enchia o ar da cozinha com um delicioso odor. Meu velho também tomou um grande tabuleiro com broa de fubá, que mamãe havia assado ontem à tarde. O café da manhã já estava garantido.

Deixamos nossa humilde casa, ela tinha o reboco da parede na cor branca, pequenas janelas e portas estreitas de madeira pintadas de azul e telhado colonial, e fomos em direção a estrada onde o compadre Eurico já nos aguardava em seu fusca azul ano 1977. Papai combinara com ele nos levar até o estado do Rio para que eu pudesse fazer os testes, ele era nosso vizinho e amigo da família, por isso aceitou prontamente o pedido de meu pai. A vida no campo exigia solidariedade, na roça todos se ajudavam da forma possível.

_Bom dia, cumpadre!

Depois dos cumprimentos entramos no veículo e, quando nos preparávamos para partir, Seu Eurico disse:

_O garoto guia! É bom pra ir praticando e chegar na prova afiado.

Meus olhos brilharam com aquela oportunidade, adorava dirigir, eu praticava às vezes no carro do patrão e agora teria uma possibilidade de levar o carro durante a viagem. Assumi a direção, colocamos os cintos, dei a partida. O motor roncou, depois veio o movimento, a velocidade e o vento que assoprava em meu rosto e teimava em desmanchar meu penteado, causavam em minha alma euforia e uma sensação de liberdade, bem diferente do que sentia com a rotina de pedra da vida na roça.

Eu guiava o automóvel, Seu Eurico estava ao meu lado e no banco de trás meu pai levando consigo os papéis, documentos e o café da manhã que tomaríamos mais tarde. O dono da máquina me orientava, pontualmente, mas parece que eu só escutava o ruído do carro, que para mim se parecia com o som de uma sinfonia. Acelerei e fomos embora.

A viagem seguia tranquila, a estrada estava pouco movimentada, pois saímos de casa por volta de quatro da matina. Chovia bastante, mas nada que fosse capaz de diminuir minha satisfação de dirigir...

A fome estava apertando e decidimos parar antes da divisa entre o estado de Minas e do Rio para tomarmos café. Depois de percorrer algumas dezenas de quilômetros, chegamos numa grande serra, com uma descida muito acentuada. Ao final dela, iríamos encostar o carro para forrar o estômago. Seu Eurico era homem de poucas palavras, papai cochilava enquanto eu me esforçava para enxergar o que vinha pela frente.  

Acontece que a chuva apertou, indicando que as águas continuariam a cair nas próximas horas e teríamos mais um dia nublado, num tom cinza desbotado. Enquanto descíamos a serra cruzamos com um caminhão subindo, o farol alto do veículo que vinha no sentido oposto me cegou temporariamente, deixando minha visão turvada.
Como não via nada direito, em meio aquela cortina formadas de pingos de chuva e confuso pelo ofuscamento, acabei pisando no acelerador e quando dei por mim estava entrando numa curva acentuada. 
Girei o volante do carro esperando com algum desespero no coração esperando fazer a curva, mas o veículo parecia não responder aos meus comandos. Minha reação foi pisar no freio e, para meu total espanto, o carro não desacelerou, mas começou a rodar na pista, deixando a mim e os outros passageiros em pânico. Eu não sabia ainda, mas a única coisa que controlava o fusca naquele momento era uma lei da Física. Ficamos a mercê dela, bastava clamar pela misericórdia divina enquanto o carro rodopiava feito um pião de madeira.

Quando parecia que tudo terminaria bem, ao final da curva, o carro saiu de vez do asfalto, atravessou o acostamento e foi cair na pirambeira, capotando por sobre o mato e indo parar numa vagem com as rodas para o ar. Estávamos todos de cabeça para baixo.

_Tá todo mundo vivo? Perguntou Seu Eurico com uma voz trêmula impactada pelo terrível acidente.

Papai estava pálido devido ao susto. havia café com leite e broa pra todo o lado. E eu sentia que meu coração iria sair pela boca a qualquer momento, tamanho era o medo que sentia de morrer aos 18 anos de idade.

_Mas que diacho deu na sua cabeça, rapaz? Onde já se viu entrar numa curva correndo daquele jeito... Você quase nos matou. Ponderou o dono do fusca.

Fiquei envergonhado e pedi desculpas. Tentei me recompor, pois agora tínhamos que sair daquela posição incômoda, meu estômago parecia se misturar com o cérebro e não suportaria por muito tempo ficar de ponta cabeça e desmaiaria. 

Lá do alto do barranco ouvimos uma voz:

_Tem alguém vivo aí embaixo? Vocês estão bem?

Era o caminhoneiro do farol alto que havia me cegado, ele viu pelo retrovisor o fusca rodando na curva e sendo engolido pelo precipício, daí resolveu encostar e tentar ajudar.
Seu Eurico respondeu que estávamos bem, mas não podíamos sair do carro, pois as portas ficaram emperradas devido ao carro ter capotado. O caminhoneiro falou que iria seguir viagem até o posto mais próximo para pedir socorro. Senti algum alívio, me desculpei novamente com papai e com Seu Eurico e me defendi dizendo que o ocorrido fora um acidente e eu não tinha culpa e nem experiência para ter evitado aquela situação. Os dois passageiros me perdoaram e agradecemos a Deus por ninguém ter se ferido. Estávamos presos no interior do carro, só nos restava ter paciência e aguardar pelo auxílio que viria. A espera foi longa, tão longa que comecei a delirar. Era muito sangue pressionado a minha cabeça e meus olhos ficavam entreabertos piscando sem parar...

Já era dia, a chuva dera uma trégua, quando ouvi uma voz:

_Aguentem aí, pessoal, já vou tirar vocês daí, depois cuido do carro!

Um homem se aproximava, ele vestia uma longa roupa azul. Pensei comigo:

_Ora, será ele um super-herói como aquele da capa longa que vi no cinema certa vez? Então heróis existem de verdade! Exclamei.

O homem fincou um pé de cabra na fresta da porta do fusca, puxou firme e conseguiu abri-la. Depois ele me puxou pelo tronco para fora do veículo.

Deitado naquele chão molhado, bastante tonto e com o raciocínio avariado, eu vi o homem que trajava um roupão azul tirar do carro meu pai e o Seu Eurico. Minha viagem para tirar carteira acabaria ali e fiquei decepcionado comigo mesmo, mas foi naquele exato instante que descobri que heróis existem, mas diferente do que fora mostrado na telona, eles não usam capas, usam macacão.   

O herói era um mecânico que veio da cidade nos resgatar, depois que nos salvou enganchou uma corrente no fusca e lá de cima do barranco, com seu caminhão rebocou o carro morro acima. Depois nos levou até o hospital mais próximo, fomos examinados e liberados pelo doutor, afinal, graças a Deus, nada de grave aconteceu conosco. O fusca, tinha a lataria resistente, precisava apenas de pequenos reparos de lanternagem. Como tudo estava bem, a viagem seguiu, mas com Seu Eurico no volante. Chegamos no destino, me apresentei para o examinador e fui fazer os exames teóricos e práticos de direção sob a supervisão de um oficial de trânsito. Ainda assustado com o acidente sofrido, fiquei trêmulo quando o oficial ordenou que iniciasse a prova prática no veículo. Relutante, tomei o volante, fechei os olhos por um instante, me concentrei, restabeleci a calma e decidi que só voltava pra casa com a carteira na mão. Depois de tudo, enfim fui aprovado e minha felicidade ficou completa quando vi a expressão de orgulho no semblante de meu pai ao receber as boas novas. Agora podia ir embora aliviado depois de uma longa aventura que quase custou nossas vidas!

7.9.16

Versões sobre a independência do Brasil

O sete de setembro foi tomado como marco fundador da nação brasileira. A data representa a separação do Brasil de Portugal a partir de 1822.
Toda jovem nação precisa de símbolos, mitos e heróis que possam legitimar um novo governo ou um novo tempo e servir de referência para unir o povo. Essa necessidade de criar uma identidade nacional justificou todo o esforço do Estado brasileiro para perpetuar a memória do dia da independência no imaginário popular.

Assim, para que a estratégia se consolidasse, houve incentivo governamental para historiadores e artistas escreverem e pintarem a data e os seus acontecimentos com o objetivo de eternizá-la. Como desdobramento dessa política pública para registrar a história, tivemos a produção de obras literárias, o nascimento de instituições acadêmicas e o surgimento de um acervo artístico, como, por exemplo, o célebre quadro de Pedro Américo: O grito do Ipiranga (1888), o qual mostra o sete de setembro de 1822.


Analisando a pintura é possível percebermos que o artista seguiu a orientação ideológica oficial, isto é, aquela defendida pelo governo brasileiro, no sentido de transformar a data num grande feito. Observe que o pintor retratou o fato histórico e atribuiu a d. Pedro um papel central. O príncipe se destaca frente à tropa, é o líder, um comandante militar que declara o fim do jugo colonial perante seus comandados.
O caipira, situado à esquerda de quem observa a imagem, fica atônito, talvez sem ter a mínima ideia do que se passa naquela colina, era um bestializado, enfim, estava à margem dos acontecimentos políticos em curso. 

Mas será que os acontecimentos ocorreram mesmo assim? No livro 1822, escrito pelo jornalista Laurentino Gomes, o autor descreve esse momento como algo sem brilho e desprovido da aura mítica mostrada no quadro do século XIX.  O escriba conta que d. Pedro, que naquele dia retornava de São Paulo para o Rio de Janeiro, estava sentindo forte desconforto intestinal, por conta de uma diarreia. A respeito de sua montaria assinala que ela "nem de longe lembrava o fogoso alazão que, meio século mais tarde, o pintor Pedro Américo colocaria no quadro “Independência ou Morte”, também chamado de “O Grito do Ipiranga”, a mais conhecida cena do acontecimento. O coronel Marcondes se refere ao animal como uma “baia gateada”." (Fonte: Folha ilustrada).

A "baia gateada" que servia de montaria para o príncipe era uma mula com pelagem amarelo-avermelhada, meio de transporte usual entre os que trafegavam pela região montanhosa e de difícil acesso da Serra do Mar. Cavalos não conseguiam dar conta daquele trajeto. Mas essa versão menos suntuosa da história não prevaleceu na historiografia, isto é, na escrita dos fatos históricos.  

A obra de Pedro Américo foi bastante divulgada entre o povo ao longo dos anos, sobretudo através dos livros didáticos utilizados nas escolas de todo o país e contribuiu para cristalizar esse acontecimento no imaginário popular, reforçando a ideia de que a separação do Brasil foi um ato de bravura, conduzido por um grande líder. Ela ajudou, em suma, a consolidar a versão oficial dos acontecimentos conforme desejava a elite política que estava no poder no século XIX e que precisava da história para construir uma identidade nacional e forjar um novo Estado independente de sua antiga metrópole.

O exemplo da independência do Brasil e suas diferentes versões mostra como a história e o ato de escrevê-la  é, em si, uma manifestação de poder. Poder de escolher o que deve ser lembrado e o que, consequentemente, pode ser esquecido. Esse processo ocorre, pois o registro da história não se resume em narrar objetivamente os acontecimentos, o relato sofre a interferência dos agentes envolvidos no processo de escrita da história e também é marcado pelos interesses dominantes em seu tempo. Cabe a nós, historiadores, historiar os mitos, desconstruir os fatos, confrontar diferentes documentos e versões para tentarmos conhecer as tramas e complexidades que perpassam a historiografia a fim de compreendermos melhor o fazer histórico e a nossa realidade.  

4.9.16

Cultura, arte e lazer em Leopoldina

A Cultura leopoldinense ganhou novo e forte fôlego, especialmente a partir da primeira década deste século, primeiro com a consolidação do Museu Espaço dos Anjos, depois com a chegada da Casa de Leitura Lya Botelho e, mais recentemente, a inauguração do Centro Cultural Mauro de Almeida reforçou o renascimento do setor na cidade.   

Essa revitalização cultural é um forte indicativo de sua importância para o município e também indica que a população, pelo menos parte dela, valoriza a cultura local e os espaços destinados à preservação do maio r patrimônio de um povo. Sinal de que há esperança e que podemos sempre melhorar.

Se antes era comum ouvirmos as pessoas reclamarem da falta de opção de entrenimento na cidade, agora o cenário começa a a ser modificado, pois temos um verdadeiro circuito cultural na cidade que atende muito bem ao lazer das famílias leopoldinenses e dos turistas que desejam conhecer mais sobre nossa bela terra.

Agora, cabe a população leopoldinense cobrar das autoridades públicas a manutenção desses espaços de cultura, bem como a ampliação de suas atividades, a fim de promovermos, cada vez mais, a inclusão social e a cidadania através da celebração da cultura popular e do resgate de nossos valores históricos e identitários.



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