7.9.16

Versões sobre a independência do Brasil

O sete de setembro foi tomado como marco fundador da nação brasileira. A data representa a separação do Brasil de Portugal a partir de 1822.
Toda jovem nação precisa de símbolos, mitos e heróis que possam legitimar um novo governo ou um novo tempo e servir de referência para unir o povo. Essa necessidade de criar uma identidade nacional justificou todo o esforço do Estado brasileiro para perpetuar a memória do dia da independência no imaginário popular.

Assim, para que a estratégia se consolidasse, houve incentivo governamental para historiadores e artistas escreverem e pintarem a data e os seus acontecimentos com o objetivo de eternizá-la. Como desdobramento dessa política pública para registrar a história, tivemos a produção de obras literárias, o nascimento de instituições acadêmicas e o surgimento de um acervo artístico, como, por exemplo, o célebre quadro de Pedro Américo: O grito do Ipiranga (1888), o qual mostra o sete de setembro de 1822.


Analisando a pintura é possível percebermos que o artista seguiu a orientação ideológica oficial, isto é, aquela defendida pelo governo brasileiro, no sentido de transformar a data num grande feito. Observe que o pintor retratou o fato histórico e atribuiu a d. Pedro um papel central. O príncipe se destaca frente à tropa, é o líder, um comandante militar que declara o fim do jugo colonial perante seus comandados.
O caipira, situado à esquerda de quem observa a imagem, fica atônito, talvez sem ter a mínima ideia do que se passa naquela colina, era um bestializado, enfim, estava à margem dos acontecimentos políticos em curso. 

Mas será que os acontecimentos ocorreram mesmo assim? No livro 1822, escrito pelo jornalista Laurentino Gomes, o autor descreve esse momento como algo sem brilho e desprovido da aura mítica mostrada no quadro do século XIX.  O escriba conta que d. Pedro, que naquele dia retornava de São Paulo para o Rio de Janeiro, estava sentindo forte desconforto intestinal, por conta de uma diarreia. A respeito de sua montaria assinala que ela "nem de longe lembrava o fogoso alazão que, meio século mais tarde, o pintor Pedro Américo colocaria no quadro “Independência ou Morte”, também chamado de “O Grito do Ipiranga”, a mais conhecida cena do acontecimento. O coronel Marcondes se refere ao animal como uma “baia gateada”." (Fonte: Folha ilustrada).

A "baia gateada" que servia de montaria para o príncipe era uma mula com pelagem amarelo-avermelhada, meio de transporte usual entre os que trafegavam pela região montanhosa e de difícil acesso da Serra do Mar. Cavalos não conseguiam dar conta daquele trajeto. Mas essa versão menos suntuosa da história não prevaleceu na historiografia, isto é, na escrita dos fatos históricos.  

A obra de Pedro Américo foi bastante divulgada entre o povo ao longo dos anos, sobretudo através dos livros didáticos utilizados nas escolas de todo o país e contribuiu para cristalizar esse acontecimento no imaginário popular, reforçando a ideia de que a separação do Brasil foi um ato de bravura, conduzido por um grande líder. Ela ajudou, em suma, a consolidar a versão oficial dos acontecimentos conforme desejava a elite política que estava no poder no século XIX e que precisava da história para construir uma identidade nacional e forjar um novo Estado independente de sua antiga metrópole.

O exemplo da independência do Brasil e suas diferentes versões mostra como a história e o ato de escrevê-la  é, em si, uma manifestação de poder. Poder de escolher o que deve ser lembrado e o que, consequentemente, pode ser esquecido. Esse processo ocorre, pois o registro da história não se resume em narrar objetivamente os acontecimentos, o relato sofre a interferência dos agentes envolvidos no processo de escrita da história e também é marcado pelos interesses dominantes em seu tempo. Cabe a nós, historiadores, historiar os mitos, desconstruir os fatos, confrontar diferentes documentos e versões para tentarmos conhecer as tramas e complexidades que perpassam a historiografia a fim de compreendermos melhor o fazer histórico e a nossa realidade.  

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