Nos noticiários da TV, nos bancos da praça, nas filas das agências bancárias, da prefeitura e de órgãos estatais é comum ouvirmos a mesma reclamação: “A culpa por essa demora e pelo atraso é da burocracia”. A burocracia é tão apedrejada em nosso país que deveríamos sofrer uma sanção da ONU, tal qual a recente pressão da comunidade internacional sob o Irã, onde uma mulher foi condenada à morte por pedradas.
Até mesmo em discursos políticos é possível notar ataques à burocracia, que é associada popularmente com a burrice (“burrocracia”). Não se fala da gestão e dos gestores que utilizam o instrumento administrativo chamado burocracia. Desvia-se o foco da crítica para a ferramenta e não se olha para quem a manuseia, ou seja, gestores e funcionários tanto do setor público quanto do privado. É mais cômodo transferir o problema para o “sistema” e para a burocracia do que admitir a existência de problemas gerenciais no Estado.
Tais problemas ocorrem, sobretudo, quando não conseguimos dissociar o que é público do que é privado. Isso pode ser visualizado quando esbarramos em normas da burocracia, seja em um banco, prefeitura, autarquias etc, ou quando necessitamos da prestação de algum serviço. A burocracia moderna propõe a racionalização da administração, a qual deve ser impessoal e executada por especialistas qualificados para suas funções, não deve enxergar classe socioeconômica ou a cor daqueles que recorrem a ela, deve olhar para a pessoa e ver um cidadão, ponto final. (Ver Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil). A normatização burocrática isto é, as regras do jogo que tanto criticamos, servem, justamente, para garantir que todo cidadão que necessite de um serviço, seja atendido igualmente, de acordo com as regras previstas, o que inclui aí prazos para a prestação de serviços, espera em filas e preenchimento de formulários...
E é neste ponto que a prática burocrática irrita muitos cidadãos, pois as regras não são respeitadas. Enquanto alguns cidadãos têm que aguardar nas filas por atendimento ou esperar o cumprimento de prazos pré-estabelecidos para receberem a prestação de serviços, outros conseguem “burlar” as regras do jogo. Estes conseguem “furar” a fila e chegar até o agente de atendimento sem ter que aguardar sua vez, como as demais pessoas. Conseguem adiantar seus processos e pedidos de serviços, sobrepondo-os aos demais, inclusive, aos que já aguardavam deferimento antes de seu pleito.
As maneiras para se conseguir estas vantagens são inúmeras, desde possuir ou construir relação de amizade com os agentes públicos/privados até os casos mais graves e passíveis de punição administrativa e judicial, o que é comumente chamado de suborno, quando há uma tentativa de “comprar” o agente para receber em troca benefícios e adiantamentos por parte da administração. Aí é que as relações privadas podem afetar o serviço público, beneficiando alguns e prejudicando muitos outros.
Enfim, o que queremos destacar é que a burocracia não pode ser apontada por todos como o mal causador de nossos problemas e do atraso nacional. A burocracia, se bem empregada, existe para facilitar a vida das pessoas/cidadãos. Seus mecanismos são compostos com base na impessoalidade administrativa, o que pressupõe um atendimento igual para todos que precisam dos serviços do poder público, independente do sobrenome da pessoa e de sua condição social e financeira ou se ela é amiga ou desconhecida do atendente público. Se os agentes executores da burocracia o fizessem corretamente, com ética, probidade, qualificação e conseguissem distinguir com nitidez as esferas público x privado não haveria pessoas “furando” fila, pessoas sendo beneficiadas com aceleração de seus pedidos e nem pessoas sendo prejudicadas porque ficaram para trás na fila de espera.
Desse modo, as relações do agente com um cidadão que requer um serviço não afetariam em nada o processo de tramitação da requisição feita. O requerente teria que aguardar normalmente os prazos e seguir os ditames elaborados para atender a coletividade.
Perguntamos agora, a culpa é da burocracia ou de quem a gerencia e a utiliza para benefício próprio ou para beneficiar seus amigos e parentes, em detrimento de pessoas que lhes são desconhecidas e nem têm “presentes” para lhes oferecer?
Parece-nos que as “pedras” estão sendo atiradas no alvo errado. Não adianta acabar com a burocracia, como clama grande parte da população, pois, se persistirem nas administrações gestores e agentes despreparados, desprovidos de ética e profissionalismo, o problema persistirá e continuaremos insatisfeitos com a prestação dos serviços de que necessitamos. Trata-se então de uma urgente reforma administrativa, o que passa por educação e treinamento profissional de qualidade, além de melhoria das condições de trabalho e dos planos de carreiras dos servidores. Tudo isso só é possível com boa vontade e competência política para que as medidas adequadas sejam tomadas em prol da sociedade.
Rodolfo Alves Pereira
Professor da Rede Estadual de Educação de Minas Gerais e do Rio de Janeiro.
Texto publicado no Jornal Tribuna do Povo.
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