17.7.16

Helvécio, o terrível

Na fazenda do dr. Onofre, havia muita coisa da qual ele poderia se orgulhar. Ela era um fazendão, tinha uma baita sede, açude, campo de futebol, silo, amplo curral com um haras em anexo e um cafezal impecável, mas nada disso lhe trazia tanta satisfação quanto o fato de ter o exuberante Helvécio desfilando por suas extensas pastagens. 



Helvécio era um touro reprodutor de sangue puro, da raça gir, que veio lá do exterior, ainda pequeno, e rapidamente se tornou senhor absoluto do rebanho. Ele era vermelho, como brasa incandescente, chitado com manchas amareladas, ao redor dos olhos o couro era negro, pesava mais de uma tonelada, possuía um enorme cupim e um par de chifres pontiagudos, semelhantes a lâminas, voltados para trás. O conjunto da obra era sombrio e lhe dava um aspecto feroz a ponto de intimidar seus rivais e até os observadores mais corajosos.

Dr. Onofre, quando recebia visitantes em sua fazenda, como os representantes de cooperativas, compradores de café, veterinários ou os chefes políticos locais, adorava exibir Helvécio para eles, exaltando o mais imponente animal de suas terras. Por conta da beleza daquele exemplar bovino, dr. Onofre recebeu inúmeras propostas de compra pelo animal, mas, sorrindo de orelha a orelha, declinava de todas elas, dizendo que o touro era inegociável, já que se tornara o símbolo da força e da prosperidade de seu latifúndio!

Mas nem tudo era alegria na fazenda, pois todos os funcionários viviam a se queixar com o patrão sobre o comportamento de Helvécio. O boi era inexplicavelmente brabo, não permitia que ninguém entrasse no curral ou na vargem, dificultando a lida cotidiana dos camponeses e dos vaqueiros. Num dia desses, o administrador da fazenda contratou um carpinteiro que veio da cidade para consertar a cerca do curral. Mas quem disse que o danado do touro deixava o homem passar pela porteira, por fim o prestador do serviço juntou suas coisas e foi embora, deixando o trabalho por fazer, preferiu ficar vivo a receber o pagamento. Entretanto, havia um único trabalhador dali que ousava enfrentar o touro, o seu Luizinho, um agregado destemido que tinha a coragem de cruzar a porteira e colocar sal no cocho para o gado. Curiosamente, Helvécio pegava todos, menos seu Luizinho, talvez porque o homem era antigo na fazenda e ajudara a criar o vacum desde a condição de bezerro. 



Houve uma vez que o touro causou um prejuízo danado, pois cismou com um trator que estava aplainando o pasto e desembestou pra cima da máquina, batendo nela de frente, desferindo cabeçadas até seu radiador furar e jorrar água como se fosse um chafariz. Quando soube do incidente, Dr. Onofre achou graça. Quem esperava que ele fosse ficar zangado, surpreendeu-se quando ele disse:
_Ora, tirem logo o trator de lá e mandem consertá-lo! 

Contudo, com o passar do tempo, Helvécio começou a ficar ainda mais sem controle. Agora ele passara a pular a cerca e dar pega em qualquer pessoa que passasse na estrada que ficava lá no alto, do outro lado de seu pasto. Acontecia que, quando o touro avistava alguém, ele começava a pisotear o solo com a pata dianteira, o movimento do casco afundava o chão e arrancava torrões de terra. Depois ele ia disparado na direção do alvo, saltava por sobre o cercado de paus e arames e aí pernas pra que te quero para o transeunte, cuja alternativa era subir numa árvore ou pular da ponte e cair dentro do ribeirão afim de evitar levar coices e chifradas. Depois, restava ao perseguido rezar para Helvécio ir logo embora. 
Foi daí que veio uma chuva de reclamações para o dr. Onofre exigindo providências contra a violência e a rebeldia do touro indomável, pois agora as pessoas nem podiam mais passar pela estrada com medo do boi pegador. Alguns chegavam a dizer que ele tinha coisa ruim no corpo, enquanto outros falavam que a fera tinha parte com o demo. O fato é que onde o touro pisava a grama não voltava a crescer. Ameaçavam denunciar o fazendeiro na polícia, caso algo não fosse feito. Helvécio ganhou o apelido de o terrível, e, por conta de suas diabruras, ficou famoso e temido na região, exceto por seu dono, que admirava as qualidades do animal e esperava que ele se acasalasse, transferindo seus caracteres para sua prole.   

Por fim, sobrou até para seu Luizinho, que, certo dia, ao entrar no curral para dar vacina nas vacas, foi violentamente atacado por Helvécio. O boi, ao ver a pistola de vacinação na mão do campônio, partiu pra cima dele e, com uma cabeçada certeira em sua barriga, jogou-o por cima de seu lombo. Com o movimento acrobático, um dos chifres da fera se enroscou no cinto da calça de Luizinho, deixando-o preso ao touro, que passou a lhe sacudir de um lado para o outro como a quem sacode um tapete para limpar a poeira. O homem, desesperado, tentava se desvencilhar da besta e salvar a própria vida. O incidente terminou com Luizinho sendo arremessado por Helvécio em cima do telhado do curral e só foi tirado de lá após o bicho se acalmar e se afastar do lugar. Resultado: muitos hematomas e dores pelo corpo, três costelas quebradas e dois meses afastados da lida para repouso.

Após o terrível incidente, que por pouco não terminou com um óbito, houve protestos dos peões. Não teve jeito, dr. Onofre foi instado novamente a tomar medidas contra o touro. Dessa vez os funcionários da fazenda perderam a paciência e colocaram o patrão contra a parede: ou ele ou nós.

Pressionado e em prantos, o doutor decidiu por abater o animal que tanto lhe orgulhara por sua beleza, sua marcha galante e soberana, sua força e o seu gênio implacável que lhe tornava tão singular entre os demais de sua espécie. 

_Quem vai erguer o machado? Perguntou com os olhos arregalados de pavor um dos homens que trabalhavam na propriedade.

Ninguém respondeu, só havia murmurinhos e pessoas acenando negativamente com a cabeça. Então, o problema foi solucionado pelo patrão que disse que mataria o bicho a tiros de espingarda. Pegou sua arma no escritório, foi até o curral, parou na beira da cerca, apoiou o pé na madeira, fez mira, choramingou mais um bocado e puxou o gatilho: um, dois tiros e... Helvécio berrou numa altura que ecoou por toda a fazenda e até os vizinhos puderam ouvir o som de agonia do animal. 

Depois do abate, Onofre era só tristeza. Ao ver o bicho tombar e o sangue esparramar-se pela terra ao redor do touro, mandou que os homens o enterrassem, não deixou que houvesse celebração e nem que a carne de Helvécio fosse aproveitada num banquete. A partir daquele dia houve paz na fazenda, os trabalhadores podiam executar suas tarefas de forma despreocupada e o pessoal voltou a usar estrada, sabendo que estavam livres do perigo. Contudo, dr. Onofre, por sua vez, decidiu não mexer mais com gado, vendeu todo o seu rebanho, tamanha fora a decepção e a dor deixados em seu coração devido à perda do animal. 
Ele ficou desgostoso e amargurado, os dias felizes de outrora haviam ficado pra trás, agora andava soturno, desmotivado até que foi abandonando a empresa, tanto que a cipoama dava em toda parte revelando a falta de zelo. 
O homem adoecera e, antes de falecer, ainda viu a sua propriedade ser tomada pelo banco para saldar as dívidas. 

Porém, a história não se perdeu com a morte do touro, do seu dono ou com o confisco da fazenda, os feitos de Helvécio continuaram bem vivos na memória de todos, seja pelas canções entoadas pelos violeiros ou através das prosas ao redor das fogueiras, as quais celebravam o touro mais terrível que já existiu.

2 comentários:

  1. Prezados, boa tarde!
    Achei essa foto/arte da fazenda muito legal! Posso usa-la para brincar com meu neto Guilherme numa história para internet?
    Meu nome é José Portella e aguardo parecer dos senhores para aprovação ou não.
    Obrigado!

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    1. Olá, a imagem foi capturada em outro site. Está aqui de "empréstimo".

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Obrigado pelo comentário.