17.9.17

A estrada de terra, a ponte e o ribeirão

Na roça, onde passávamos o final de semana, sempre caminhávamos num grupo de 4 ou 6 primos, andávamos com os pés descalços e amarelados devido ao chão de terra batida. Não só os pés, mas também as pernas ficavam encardidas de poeira, que só deixavam os membros inferiores do corpo, à noite, depois de um banho de bucha e sabonete. É importante destacar que essa casa de campo não era um lugar qualquer, ela ficava no KM 5, uma minúscula gleba entre propriedades maiores, bastante simplória mas parecia ser um lugar encantado, parcialmente cercado pela natureza e por magia.

Mas voltando a falar da estrada,  na qual seguíamos, ela ligava o asfalto ao interior, onde se localizavam sítios e fazendas. De um lado dessa via tinha um grande morro, com o pasto para o gado do fazendeiro, do outro lado uma ribanceira, mais pastagens, e um riacho sinuoso, de águas pacatas e turvas, cor de terra, as quais entrecortavam o terreno e, por fim, um exuberante bambuzal compunha essa pintura bucólica. Nada levávamos nesta aventura, senão a roupa do corpo, linha, anzóis, varinhas de bambu e numa latinha usada de massa de tomate ia terra com minhocas, arrancadas do quintal, debaixo da jabuticabeira do vovô.






O ponto da estrada que dava de frente para o bambuzal era parada obrigatória do grupo. Pois, do alto gritávamos e ouvíamos nossas vozes ecoando por todo o espaço ao redor, sob sol escaldante e um belíssimo céu azul.




Depois do eco, a jornada prosseguia, contávamos piadas, apostávamos corrida e pulávamos entre os blocos de terra que desbarrancavam. Era preciso cuidado e atenção para ver onde se pisava, esterco de vaca era abundante nesta estrada. Na cerca de arame farpado que acompanhava todo o trajeto era possível observar toda a sorte de aves: seriemas, canários da terra, joões de barro e maritacas que tornavam a paisagem ainda mais pitoresca com suas cores e as mais diferentes notas musicais que entoavam, num legítimo concerto natural!

Eis que de repente ouvíamos o rangir de uma velha carroça, normalmente, puxada por dois bois e conduzida pelo agregado da fazenda, era uma alegria só. Na roça, a aproximação de um carro de boi significava apenas uma coisa para um bando de garotos: era carona na certa! Assim, mais rápido chegaríamos ao nosso destino e mais divertido se tornava aquele passeio fantástico!

- Obrigado, vai com Deus! - assim nos despedíamos do carroceiro, que acenava com um sorriso entre os lábios.

Havíamos chegado na ponte. Por mais que ela se parecesse mais com uma pinguela, construída com tábuas de madeira e medindo aproximadamente 2,5 x 4 m, para nós ela era uma vultuosa manifestação da engenhosidade rústica dos peões daquelas paragens.




Na ponte, conversávamos por horas, observávamos o curso despreocupado do ribeirão, qualquer mínima agitação ou ondulação no riacho poderia ser indicio de uma traíra que aventurara a se exibir na flor d'água. Rapidamente atravessavam os a cerca, íamos para uma das margens e todos miravam suas linhas com anzóis e iscas naquele lugar tentando fisgar um dos peixes mais saborosos da água doce. Sonhávamos em pegá-la, para que vovó a preparasse no jantar.

Porém, a traíra nunca aparecia, fisgávamos acarás, lambaris, bocarras e mandis, todos peixes miúdos, mas cada um deles valia mais que um  troféu. Tirar o mandi do anzol exigia cuidado e, acima de tudo, perícia com as mãos, pois ele ferroava e se isso ocorresse a vítima teria forte dor de cabeça à noite. Mas esse problema tinha cura, a sabedoria da roça e a medicina popular ensinavam que caso fôssemos ferroados, bastava esfregar o local da ferida na barriga do mandí que a dor de cabeça não viria. É como se o óleo da barriga do peixe possuísse propriedades curativas para o veneno que ele injetava nos seus captores.

Os peixinhos fisgados eram cuidadosamente colocados num ramalhete, semelhante a uma fieira, que era arrancado junto ao mato, passava-se o galho da planta por uma das guelras e puxava pela boca do peixe, os quais seriam orgulhosamente expostos na varanda da casa, onde ficava o fogão a lenha. Cada peixinho daquele tinha sua história, seu grau de dificuldade, peculiaridades na luta travada com o pescador etc. Ao chegarmos na velha casa da roça, contaríamos a todos os nossos causos, que seriam ouvidos com entusiasmo pelas pessoas da casa. Lá, a vovó recolhia os espólios da pescaria, nós ajudaríamos a limpar, retirando as vísceras e as escamas com uma faca. Do resto a velha se encarregava, salgando e salpicando fubá nos peixinhos até que estivessem prontos para serem fritos e degustados. Deste delicioso banquete só restariam as espinhas.

Quando se encerrava a pesca nos banhávamos no ribeirão, mergulhávamos e tentávamos nadar naquelas águas rasas onde os braços e pernas ficavam presos no cascalho e disputávamos quem prendia a respiração por mais tempo debaixo d'água.




Já era tardinha, o sol começava a se pôr, o corpo molhado nos fazia sentir frio. Era hora de voltar para casa. O retorno não era tão empolgante quanto o caminho feito para vir a ponte, por mais belo que fosse o pôr do sol, havia tristeza no recolher das aves e no silêncio fúnebre que vinha da capoeira. 




Era algo deprimente, que permanecia oculto de dia e só se manifestava com o cair da noite. Mas isso não importava tanto para nós, os sentimentos sorumbáticos e melancólicos rapidamente se dissipavam, afinal, sabíamos que no dia seguinte teríamos uma nova chance de fisgar a danada daquela traíra.
E nós amávamos aquela doce aventura na roça.

Ywesky

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