19.7.17

Ritos fúnebres na África Atlântica moderna

As crenças funerárias ocupam cada vez mais espaço nas pesquisas dos historiadores. Em franco diálogo com a Antropologia, os pesquisadores em história se debruçam sobre os ritos fúnebres, elencando-os como fontes históricas para seus estudos.

Tais práticas são preciosos vestígios, que se bem interrogadas e analisadas, podem revelar informações sobre a vida de um povo, seus valores, as representações sociais e as expectativas que nutriam em relação à vida após a morte. 

Dentre tantos pesquisadores que têm se ocupado do assunto, aqui no Brasil podemos citar o trabalho da professora Mary del Priore. Em uma publicação de 2011 (Ver o texto: Passagens, rituais e práticas funerárias entre ancestrais africanos:outra lógica sobre a finitude), ela analisou como os africanos da Costa Atlântica, indo do Senegal à Angola, no período Moderno encaravam a morte e o quanto esse momento era representativo e revelador de aspectos culturais, sociais e políticos de um povo. Foi dessa região que veio a maior parte de nossos ancestrais africanos, os quais trouxeram para cá suas crenças, valores e costumes, muitos dos quais, posteriormente, foram incorporados e transformados pela cultura cristã e a ação do colonizador português.

A África Ocidental é um vasto espaço, onde várias etnias disputavam territórios e terras férteis desde a Antiguidade. Esses povos dominavam a agricultura, conheciam o ferro e praticavam elaborados e complexos rituais fúnebres. Ali, as epidemias, as guerras e a fome ceifavam incontáveis vidas. Talvez, a proximidade com a morte tenha contribuído para que ela terminasse por ser incorporada à cultura dos africanos como uma forma de domesticá-la através de símbolos, ritos, crenças e valores (DEL PRIORE, 2011, op. cit. p. 124).

Nesse contexto de constante convívio com o óbito, tais civilizações conferiram uma peculiar importância à questão da posteridade. Procriar lhes assegurava prestígio perante a sociedade. Eram os filhos que iriam lhes garantir uma velhice tranquila e intermediar suas sobrevivências enquanto ancestrais. Portanto, o ato de gerar descendentes era um mecanismo que estava diretamente ligado à manutenção dos típicos rituais de transpasse, uma vez que o falecimento foi configurado como etapa obrigatória de ascensão do homem. Como definiu Roger Bastide: “sociedades de enriquecimento progressivo da personalidade” – caso daquelas em que se passa do status inferior de adolescente ao de adulto, depois ao de ancião e enfim, ao mais elevado, o de ancestral (idem. p. 138).


Acreditava-se que o morto vivia num mundo de sombras, onde reproduzia sua antiga vida terrena. Assim, era comum os reis serem enterrados junto com bens materiais, comida e seus servos. Isso foi comum em Gana, antiga Costa do Ouro no golfo da Guiné. "Em algumas destas cerimônias, segundo cronistas europeus, matavam-se dezenas de escravos" (ibidem, p. 126). Provavelmente, o objetivo de tais sacrifícios humanos era "era afastar a alma do defunto, evitando que esta voltasse, apavorando os membros da família". (ibidem, p. 126).  

O rito fúnebre africano da época moderna, enquanto âmago da questão, pode ser destacado por diversos aspectos em sua gama de peculiaridades. Um ponto relevante a ser observado é o fato de em algumas regiões ser quase uma obrigação perante a sociedade o comparecimento dos conhecidos do defunto ao seu velório. A ausência seria encarada como uma constatação do envolvimento do indivíduo na morte do falecido, ainda que por algum tipo de prática de feitiçaria. Outro fator instigante sobre as cerimônias funerárias é o costume indispensável que seus mortos fossem acompanhados de tecidos em suas tumbas e toda simbologia envolta nesta prática. Quanto mais volumosa fosse a múmia do finado, mais importância teria tido ele em vida. De acordo com o estudo de Mary del Priore: "Entre os povos do Reino do Congo, as “embalagens têxteis” de defuntos impressionaram os viajantes estrangeiros. Louis de Grandpré, de passagem por Cabinda, no Reino do Congo, deixou impressionante descrição: depois de coberto de corais, o corpo era tão enrolado em panos que não se distinguiam mais, neste grosso envelope, as pernas ou braços do defunto. A cada dia se acrescentava um novo pano. A imagem, pintada pelo mesmo Grandpré, que ilustra o funeral de um dignitário no século Dezoito mostra perto de cinqüenta escravos puxando por cordas uma pesada carroça sobre a qual vai colocado um imenso pacote, ocupando todo o espaço. Teria “vinte pés de comprimento por quatorze de largura”, conta o autor (GRANDPRÉ apud DEL PRIORE, 2011, p. 129).

Assim, resta claro a importância social e cultural que envolvia o ato de sepultar os mortos nas sociedades africanas ocidentais, o qual tem sido objeto de estudos por parte de historiadores, antropólogos e sociólogos, pois toda aquela simbologia funerária, ou mesmo a ausência dela, é fonte relevante de informação que permite ao pesquisador acessar o imaginário, as crenças e as diferenças socioeconômicas comuns ao mundo dos vivos.


Pesquisa e texto por:

Jeane Alves Teixeira Riguete
Rodolfo Alves Pereira